As bibliotecas comunitárias são espaços de enraizamento comunitário, acolhimento, interação e desenvolvimento social, ultrapassando o livro e a leitura, e entrando nas dinâmicas sociais. Ao percebermos que estes espaços recebem interagentes, pessoas que fazem uso das bibliotecas comunitárias, agentes transformadores do espaço e não apenas usuários, compreendemos um pouco como as relações são construídas.
Os grupos HIPERDIA e de saúde mental estão inseridos principalmente na Atenção Primária à Saúde (APS), mais comumente representadas pelas Unidades Básicas de Saúde (UBS). Este nível de atenção é caracterizado pelo cuidado aos agravos e sintomas mais comuns na população, que exigem menor complexidade de recursos, ainda que se trate de um trabalho bastante complexo. O foco está no cuidado no território, entendendo-o não apenas de forma geográfica, mas como o locus onde se dão as relações, a cultura e a história de uma comunidade. Enquanto os grupos HIPERDIA têm, majoritariamente, como público-alvo, pessoas com hipertensão e diabetes, os grupos de saúde mental trabalham com uma concepção ampla e diversa, podendo servir, por exemplo, como espaços de escuta, acolhimento, convivência e integração na comunidade, utilizando recursos e formatos diversos, de acordo com a demanda de cada território..
Pretendemos aqui relatar como a Biblioteca Comunitária do Arvoredo deixou de ser um espaço ocupado para realização dos grupos de saúde, HIPERDIA e saúde mental, da Unidade de saúde Mapa, para se tornar um espaço mediador, para além da literatura. A intersetorialidade é constituída na promoção à saúde como potencializador de saúde física, mental e construção de redes de apoio, aliando profissionais da saúde com profissionais da educação popular e da cultura.
Os grupos de promoção da saúde, ao saírem de um espaço físico já entendido socialmente a partir da concepção biomédica de saúde, produzem o que chamamos de desemparedamento, ocupando um espaço comunitário ao ar livre — tanto em seu sentido literal, como é boa parte do espaço da Arvoredo, que está localizada em um terreno de 3,5 hectares, com intensa arborização, quanto no sentido de abrir os significados do que se entende por saúde e saúde mental. Pode-se resgatar, a partir deste contexto, os princípios da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, promovendo um cuidado em saúde enraizado no território de pertencimento do usuário e de forma a enfrentar o estigma que desafia as pessoas em sofrimento psíquico historicamente; o trabalho dos antigos manicômios era o da exclusão e de esconder da sociedade pessoas que fugiam de quaisquer ideais de normalidade e adaptação social. Com essa mudança de paradigma, também há a possibilidade de uma relação mais horizontal entre profissionais de saúde e usuários, como pudemos observar, por exemplo, nas rodas em que não necessariamente sentavam-se em conjunto representantes dos profissionais da saúde, dos usuários ou da Biblioteca — ou até mesmo quando esses papéis se desconstruíam, ao profissionais da saúde ou da Biblioteca trazerem as suas próprias experiências. Da mesma forma, a ausência dos tradicionais “jalecos” também contribuía para que pudessem acontecer trocas cada vez menos verticais. Nesse sentido, pudemos experienciar, diversas vezes, momentos em que usuários eram acolhidos ao expressar os seus modos de enfrentar o sofrimento físico e/ou psíquico. Isto ocorreu, inclusive, no grupo de HIPERDIA, que deixou de ser um espaço exclusivamente voltado à educação em saúde e monitoramento de pressão arterial e glicemia para se transformar, também, em um momento de escuta, acolhimento e troca de experiências, por vezes bastante semelhante ao outro grupo, o qual foi denominado, pelos próprios usuários, como Grupo de Acolhimento. Neste último, por sua vez, construímos um cuidado em saúde mental que não é exclusividade de especialistas da área, como psicólogos ou psiquiatras. Além desses especialistas, o cuidado e a escuta em saúde mental, muitas vezes, estava em outros atores: outros profissionais da saúde, representantes da biblioteca, trocas com outros usuários. Busca-se, assim, superar um ideal de cura, historicamente colocado na saúde mental, podendo escutar determinados sofrimentos como formas singulares de se habitar o mundo e que se entrelaçam a todo o contexto social, cultural e histórico que produzem os chamados agravos em saúde. Portanto, além de apresentar um cuidado em saúde mental para além de um medicamento que curaria os sintomas e a “doença”, podemos construir coletivamente recursos para que estas pessoas tenham seus direitos garantidos e sua qualidade de vida aprimorada. Assim, a falta de direitos básicos, como o acesso à alimentação, moradia e educação, ou as estruturas sociais pautadas pelo racismo, sexismo e LGBTQIA+fobia também são produtoras da doença e do sofrimento.
Recursos importantes só se tornaram possíveis no contato intersetorial. O trabalho com a mediação de leitura, com a escrita e com bonecas que traziam, entre outros fatores, a diversidade humana em suas tantas facetas, colocaram em cena o enfrentamento do excesso: de doença, de violência, de lutos, de sentimentos invalidados socialmente. Ao produzir um “outro” externo através destas ferramentas, passa-se a enfrentar o excesso e o transbordamento de sentimentos em um recurso interno e, ao mesmo tempo, comunitário: aquilo que transbordava internamente, agora também está em um papel, um boneco, um grupo e uma comunidade. Foi em experiências como estas que nos deparamos, por exemplo, com mulheres, predominantemente negras, que trocavam experiências sobre o envolvimento de companheiros e filhos com o tráfico de drogas, na maior parte das vezes resultando em violência e morte. Trabalhamos, portanto, com a interseccionalidade entre gênero e raça, produzindo estratégias de validação e enfrentamento das violências diversas pelas quais passavam, de forma singular, as mulheres negras daquele território. Ainda, ao construir a história para uma boneca, falava-se, também, de sua própria história e abria-se espaço para que outras pessoas pudessem fazer o mesmo.
A inserção nos grupos não teve como fim a participação contínua em si. Nesse sentido, observamos que, muitas vezes, a demanda que nos chegava precisava ser melhor escutada. Às vezes, o que aqueles usuários precisavam era de um acolhimento pontual — como um transbordamento — de vivências nunca antes externalizadas, de um espaço de convivência em algum momento específico ou, como observamos curiosamente em diversos casos, o pertencimento à comunidade, como em casos de usuários que deixavam os grupos, porém tornavam-se voluntários assíduos da Biblioteca — era possível trazer a questão: esta pessoa está aqui, neste espaço, como usuária da UBS ou como interagente da Arvoredo?