Apresentação
Discutir a loucura no campo da saúde mental é essencial, e requer adentrar nos territórios existenciais que esta habita, uma vez que o sujeito em sofrimento mental, tido como louco, é visto com estigma por uma sociedade constituída por ideais manicomiais. Por muito tempo, essas pessoas foram frequentemente retiradas de circulação e institucionalizadas, sofrendo com diversas formas de opressão e violência, dentro e fora dos manicômios, sendo estas verdadeiras prisões aos diversos modos de subjetividade existentes. Essa imposição coloca os sujeitos em um lugar de dissidência, de tal modo, propomos uma clínica ampliada e pautada na diferença, baseada no devir, levando-se pois, o conceito de clínica como Clinamen, ou seja, que acompanha as bifurcações no percurso de vida e a criação de novos territórios existenciais.
Para tal, assume-se um compromisso ético-estético-político com o sujeito, visto e caracterizado como expressão de potência de vida em resistência às formas de dominação. Tanto a arte como a cultura ampliam as possibilidades do indivíduo de resistir e existir no mundo: a arte torna visível o que se desloca, permitindo a criação de um território para a loucura, enquanto a cultura popular propicia um elo do coletivo, gerando pertencimento e produção de vida. Ambas atuam como artifícios mediadores e geradores de saúde mental, embasando um modo de fazer clínica baseado nas diferenças, além de contribuir com a emancipação e autonomia dos sujeitos.
Nesse contexto, o Projeto: “Janela Aberta: Arte, cultura e geração de renda em Saúde Mental”, vinculado ao Departamento de Psicologia da Universidade Federal da Paraíba - UFPB, se caracteriza por ser uma proposta de extensão articulada a partir do tripé ensino, pesquisa e extensão enodando iniciativas de arte, cultura e geração de renda produzidas por usuários de serviços de saúde mental de João Pessoa - PB. O projeto realiza suas atividades presencialmente e ocasionalmente no meio virtual, passando a realizar atividades de apoio a iniciativas de economia solidária como a Bem me quero, e adentrando o espaço do CAPS III, propondo oficinas de pintura, maquiagem, entre outras.
Paralelamente, o Janela Aberta se mantém em seu objetivo de criar espaços que possam ser ocupados e territorializados por sujeitos em sofrimento mental, alargando suas possibilidades de existência no mundo. De tal forma, o projeto se propõe a desenvolver diversas atividades inventivas relacionadas à saúde mental, revestidas de arte e cultura, das quais, neste trabalho se destaca a realização de um sarau poético em homenagem a Felinto, artista e usuário do CAPS III. Portanto, o objetivo deste estudo é relatar e discutir as experiências vivenciadas nessa ação, relacionando-as com os ideais antimanicomiais, bem como sua capacidade de produção de vida e cuidado em saúde mental.
Desenvolvimento do trabalho
O método selecionado, relato de experiência, é uma abordagem qualitativa de pesquisa que se baseia na narrativa e na descrição detalhada das vivências pessoais e das experiências dos participantes do projeto em pauta. Sendo assim, as vivências apresentadas permitem compreender com profundidade percepções, emoções e reflexões em relação aos benefícios e impactos da participação no sarau poético promovido pelo projeto Janela Aberta. Esses relatos são analisados de forma qualitativa, buscando evidenciar contribuições para a produção de conhecimento relevante e para a construção de práticas mais inclusivas no campo da saúde mental.
Resultados
O sarau surgiu pela mobilização de um profissional da Rede de Atenção Psicossocial que colabora com o projeto Janela Aberta, trazendo uma inquietação presente no CAPS III Gutemberg Botelho. A elaboração do sarau foi pensado, inicialmente, como uma homenagem a um artista frequentador do serviço que faleceu, de modo a realizar uma ação articulando a família do usuário, o serviço e a comunidade geral. Posteriormente, foi ampliado a proposta para um grande momento cultural e artístico, no qual haveria as exposições da obra de Felinto Evangelista, assim como o envolvimento de outras iniciativas e coletivos com a apresentação de músicas e poemas.
Dessa forma, foram convidados para compor essa intervenção no espaço aberto e coletivo da UFPB, na Praça da Alegria, toda a comunidade acadêmica que circulava pelo local, assim como foi articulado transporte para o deslocamento dos usuários do CAPS. Ademais, artistas e produtores do CAPS-AD David Capistrano e Caps III Gutemberg Botelho, como Cassicobra, o BatuCAPS mobilizado pelos frequentadores com instrumentos de percussão, a iniciativa de economia solidária “Bem Me Quero”, o grupo de forró pé de serra “Bate Coração” e a parceria com a Incubadora de Empreendimentos Solidários, vinculada ao Núcleo interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Economia Solidária e Educação Popular da UFPB estiveram mobilizando todo o evento.
O “Sarau Poético Cultural: Rumo à liberdade louca!” teve como objetivo mostrar a potência da arte na saúde mental como promotora da vida e, como intitulado pela fala de Felinto, estando em prol da liberdade e expressão da loucura seja em vida ou morte. Assim, o momento permitiu a ocupação do território a partir das várias intervenções culturais; a circulação pela cidade pelos usuários, expandindo seus campos de existência; e a homenagem à Felinto em toda sua arte e vivência na luta antimanicomial que experienciou cruamente.
A Reforma Psiquiátrica produziu um processo permanente de construção, reflexões e transformações no campo técnico-jurídico e sociocultural, o que demandou a participação de usuários, trabalhadores da saúde mental e comunidade como forma de promover cidadania e participação política. A vasta produção artística de Felinto Evangelista - também conhecido territorialmente como pássaro de fogo -, narra também um certo enlace com a proposta antimanicomial, de valorização da liberdade como mote principal, vislumbrando justiça social e equidade. O sarau poético mobilizou de maneira afetiva e cultural, trazer a circulação de suas produções para serem apreciadas por diversos pares frequentadores dos Centros de Atenção Psicossocial, família e estudantes da Universidade Federal da Paraíba. Para Felinto, se acreditava que sua psicose produzia transformações de coisas em sua frente, a realização deste sarau foi na prática, também a realização de uma transformação - a do projeto participativo da loucura na cidadania.
Considerações finais
Neste trabalho, a importância de uma clínica ampliada, que reconhece a diversidade das subjetividades humanas, é explicitada uma vez que, que a convergência entre arte, cultura, economia solidária e saúde mental surge como um potencial transformador no entendimento da loucura e na construção de práticas inclusivas no campo da saúde mental. O Projeto "Janela Aberta" da Universidade Federal da Paraíba exemplifica essa abordagem, ao promover iniciativas de arte, espaços de criação, cultura e geração de renda entre usuários dos serviços de saúde mental.
O sarau poético retratado, se destacou como uma celebração da expressão da loucura libertária, promovendo a ocupação de espaços públicos, a circulação das produções artísticas e a valorização da experiência dos participantes, ampliando suas possibilidades de ser no mundo e reforçando compromisso com os ideais da luta antimanicomial. No entanto, ainda se percebe desafios, como a estigmatização da loucura e a necessidade de envolvimento ativo comunitário para promover a cidadania e a participação política, indo de encontro a essa forma de cuidado. Contudo, a narrativa de Felinto Evangelista, assim como a realização do sarau, demonstra o potencial da arte e da cultura como agentes de transformação, enfatizando a importância de abordagens colaborativas e emancipatórias no cuidado psicossocial.