Este trabalho é parte do processo de pesquisa da tese de doutorado que está sendo construída a partir do interesse em compreender os processos de interação envolvidos nas experiências de padecimento e cuidado em saúde mental e a construção do repertório de narrativas dos modelos explicativos de padecimento e cuidado na comunidade do Piriquitaquara, na Ilha do Combu, situada na cidade de Belém do Pará.
Quando o padecimento é olhado apenas pelo lado biológico, quando não há o reconhecimento dos significados de forma ampla para o usuário e seus familiares, há uma interferência no reconhecimento de problemas que podem ser perturbadores, mas potencialmente tratáveis no modo de vida do sujeito. O padecimento (ilness) é polissêmico, as experiências são variadas e por isso vale à pena examinar cada um dos sentidos, tanto em uma perspectiva clínica como também antropológica. Assim a interpretação do que é o adoecimento também pode contribuir para um trabalho mais efetivo de cuidado, dentro de uma lógica territorial.
Em concordância com a antropologia médica optou-se por usar o termo “padecimento”, pois fazemos referência à compreensão e experiência popular sobre doença e/ou sofrimento, tal qual a definição de illness, o que pode ser traduzido como padecimento.
Outro conceito que também utilizamos ao longo do trabalho é o de modelos explicativos de cuidado, entendidos como todas as formas de prevenção, tratamento, controle, alívio ou cura de uma determinada condição. Pretendemos adentrar o universo particular da comunidade do Piriquitaquara e conhecer seus saberes sobre saúde, doença e atenção, por que não, entender como estes saberes transitam dentro dos espaços dos serviços de saúde, a partir da perspectiva dos ribeirinhos.
Dar visibilidade às formas de entendimento, explicação e cuidado das questões relacionadas ao adoecimento mental desta comunidade, mas para, além disto, conhecer – a partir da fala dos próprios ribeirinhos e da observação participante, como estas compreensões e as suas relações foram construídas. Conhecer o que está posto e adentrar no campo do não posto.
Assim, iniciamos o estudo como uma pergunta: como se dá os processos que decorrem da experiência de padecimento e cuidado em saúde mental desta comunidade ribeirinha?
Reconhecer e permitir a mediação entre os saberes técnicos, populares e tradicionais nos ajuda na compreensão dos itinerários terapêuticos percorridos por uma determinada população (quais e como foram desenhados), mas isto só é fidedignamente possível se compreendermos quais são e como esta população construiu as formas de explicação e cuidado da sua saúde e de seus padecimentos.
Para nos auxiliar com a possibilidade de responder nossos questionamentos, seguiremos o percurso proposto pela etnografia. A etnografia nos convoca a uma imersão no campo da pesquisa, a vivenciar o campo e estar junto aos sujeitos da pesquisa, estabelecer uma relação com eles e elas a fim de possibilitar que estes e estas sejam de verdade e de direito aqueles atores ou aquelas atrizes no processo e, que vivem (no caso da nossa pesquisa) o objeto que elegemos para estudo e portanto, podem falar com propriedade sobre.
Estamos realizando um estudo etnográfico que também inclui a intenção de conhecer e descrever, a partir das narrativas da comunidade, os processos de autocuidado destas e a compreensão do impacto da colonialidade e institucionalização destes saberes a partir do saber da ciência médica. Mas é exatamente quando uma pesquisa é construída principalmente dentro da perspectiva da etnografia é que o campo é inicialmente uma aposta com a qual deixamos que ele nos direcione por todo o percurso do estudo, e os resultados parciais desta têm nos mostrado que o campo também pode ser inesperado.
As narrativas que nos chegam dão conta de que os modelos de explicação de padecimento e as práticas de autocuidado em saúde mental na comunidade ribeirinha do Piriquitaquara foram construídos a partir de experiências pessoais e de grupo que foram passados de geração em geração de famílias de origens quilombolas e indígenas, bem como a influência da existência das encantarias e que se misturam entre si. Benzimento, chás, banhos, rezas, trabalhos em terreiros foram e são as formas de cuidado e autocuidado utilizadas na comunidade, mas também está sendo possível perceber a coparticipação das práticas biomédicas tanto nas práticas de autocuidado como nos itinerários terapêuticos da comunidade.
No que diz respeito aos modelos explicativos de padecimento, tem sido possível verificar narrativas sobre os efeitos de “desobecimentos” aos chamados ou ordens de encantados da floresta e dos rios, como os índios guardiões da floresta na ilha e, estas explicações são atravessadas pelo saber da ciência e instituição psiquiatria, cujo desdobramento é ainda a dupla possibilidade de explicar o padecimento localizado na loucura – nas palavras dos próprios ribeirinhos e, no místico.
Mas, em verdade, o que tem nos causado certa surpresa são as narrativas sobre a altiva influência das religiões neopentecostais no modelos explicativos de padecimento mas, principalmente, nas práticas de cuidado e autocuidado destes padecimentos, provocando uma espécie de apartheid religioso e cultural nas famílias da comunidade do Piriquitaquara, onde de um lado estão as pessoas que continuam fazendo suas rezas e tomando seus banhos de ervas e, do outro as pessoas que se converteram às doutrinas neopentecostais das igrejas que hoje estão na ilha e que, fazendo coro aos praticantes destas doutrinas, rechaçam de forma até violenta os saberes tradicionais da comunidade e que um dia também se valeram deles.
Seria então apenas mais outro modelo de explicação de padecimento e cuidados praticados por aquela comunidade ribeirinha ou, indo mais adiante olhando para o passado: uma narrativa que se repete e se reconta sobre a colonização da história de vida das comunidades tradicionais do Pará, da Amazônia, do Brasil?
O trabalho em campo tem mergulhado nas narrativas, nos modos de vida e na cultura da população ribeirinha da comunidade do Piriquitaquara e a observação atenta, os diálogos com a população e a escuta têm sido a ferramenta essencial do trabalho. O que pretendemos com a pesquisa era permitir um olhar ampliado sobre o cuidado em saúde mental das comunidades ribeirinhas, em especial na Amazônia Brasileira, mas o campo tem pedido pensar e discutir também sobre “olhares” e quais os desdobramentos já existentes e os possíveis de vir a ser, no cotidiano do bem viver da comunidade ribeirinha do Piriquitaquara.