Apresentação
Para assegurar a todos acesso continuado e integrado em saúde, o SUS (Sistema Universal da Saúde) baseia-se em três princípios fundamentais: Universalidade, Equidade e Integralidade. Tais princípios, promovem uma abordagem abrangente do cuidado, buscando garantir justiça no acesso à saúde, de maneira que todos os indivíduos possuam uma oportunidade equânime no uso dos serviços disponíveis em seu território e, para isso, lança-se mão de diferentes estratégias para se alcançar as diversas necessidades dos/as usuários/as.
A Visita Domiciliar (VD) se configura como um dispositivo inserido na lógica de cuidado na Atenção Básica (AB), pautada no princípio da equidade. Tal dispositivo busca abarcar os diferentes contextos dos/as usuários/as e as desigualdades existentes, procurando levar o atendimento aos sujeitos que não podem acessar os serviços em saúde.
Por sua capilaridade, a Atenção (nada) Básica está mais próxima dos territórios de vida dos/as usuários/as, ou seja, está imersa na realidade de diversas famílias e comunidades. Muitas vezes, é o primeiro e principal ponto de referência em saúde para a população. Ao propor um cuidado longitudinal, acompanhando os indivíduos ao decorrer do ciclo vital, desde a infância até a morte, tais serviços estabelecem relações com os/as usuários/as, em um processo de construção de vida. É como se houvesse uma certa porosidade entre o serviço de saúde e a comunidade, um enlaçar de duas esferas. Quanto mais próximas estiverem as equipes da AB dos/as usuários/as, maiores as chances de produzir ações de saúde à altura das demandas do território.
Não devemos, porém, confundir essa característica longitudinal no sentido de uma história a ser contatada ou coletada pelos profissionais de saúde. Apostamos em um cuidado longitudinal em seu sentido geográfico, visando não perder de vista tais usuários/as do radar do cuidado das equipes das Unidades de Saúde da Família (USF). Um dos principais dispositivos usados para garantir esse princípio é a VD, geralmente realizada por Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e outros profissionais de saúde das USF, sejam médicos, enfermeiros ou dentistas. Ao prestar assistência e vigilância aos usuários/as em seu domicílio, a VD reforça os princípios da equidade e do acesso. Esse ir ao encontro dos/as usuários/as e seu local mais familiar e cotidiano permite novos desdobramentos no rastro do cuidado.
Nesse contexto, o presente trabalho tem como objetivo relatar as práticas e afetos causados pelas visitas domiciliares realizadas através do estágio de Psicologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) em uma USF de João Pessoa-PB. Diante da experiência, percebemos o impacto em adentrar às casas das pessoas, bem como conhecer os marcadores sociais que atravessam as suas vivências e seus processos de saúde, buscando, por meio do vínculo construído, produzir vida.
Desenvolvimento
As visitas aconteceram a partir do encaminhamento dos casos pela equipe de referência aos estagiários/as de Psicologia, e também de casos acompanhados pelas/os ACS de cada território. Assim, pela manhã, os estagiários realizaram as visitas em duplas ou trios, com outros estudantes, e sempre acompanhados do/o ACS. Durante o trajeto das moradias visitadas, éramos informados acerca do caso, das vivências dos usuários e como era esse território habitado. A partir dos encontros, buscamos entender o território existencial dos sujeitos, por meio de uma escuta atenta e sensível às questões dos/as usuários/as. Buscamos levar um acolhimento sem uma oferta prévia, mas que objetivou traçar possibilidades de cuidado junto aos sujeitos escutados, no sentido de resgatar a sua potência de vida no cotidiano do território.
Em diversas escutas, ofertamos alguns dispositivos presentes no serviço, no qual a escuta direcionou-se ao cuidado mais ampliado, a exemplo da oferta da terapia comunitária, da busca por benefícios sociais aos usuários, pela oferta das escutas individuais aos cuidadores desses sujeitos, e sempre em contraposição à visão limitante de diagnósticos, comuns à psicologia. Junto a isso, levamos os casos para as reuniões da extensão, compartilhando sobre os atravessamentos das visitas em nossos corpos, como também de possíveis direcionamentos ao caso que poderiam ocorrer no serviço ou em outros dispositivos da rede, sempre exercitando uma construção coletiva do cuidado.
Resultados
No contato com as/os ACS, possuímos uma mediação para adentrar aos lares dos usuários. Diferenciando-se de um setting terapêutico da clínica tradicional, a escuta pode ocorrer em lugares distintos, no qual o/a usuário/a sente-se mais confortável para relatar sua rotina, idas ao serviço e também sua relação com a própria saúde. Trazendo uma visão esquizoanalítica em nossa prática, pretendemos adotar uma escuta cartográfica, em que se atenta aos diversos movimentos contextuais do sujeito, que não parte de uma intervenção prévia, mas que busca se atentar as nuances do discurso, dos encontros, das afetações presentes na visita. Em alguns casos, nossa atenção flutuante conseguiu pousar em produções de sentido dos usuários, naquilo que os movimenta e produz uma potência de vida.
Em uma visita a uma usuária mais reclusa, adentramos a sua casa sem uma ideia preconcebida de intervenção, possibilitando uma ética e sensibilidade no cuidado da usuária. Durante a escuta, percebemos adoecimentos provenientes de doenças físicas, dificuldades de locomoção, além do impacto psicológico de uma reclusão e uso constante de psicofármacos. Entendendo que o cuidado ampliado ocorre a partir de uma aposta e compromisso com a vida, buscamos compreender o que movimentava o território existencial da usuária. Pousamos em sua relação com a arte, em que trouxe sua aproximação e experimentação ao crochê, aos panos e bonecas feitos artesanalmente por ela.
Ao percebermos a potência do artesanato em sua vida, convidamos a usuária a compartilhar seus trabalhos, o que desencadeou uma expressão criativa em suas palavras sobre os bordados, cores e aprendizado do crochê. Logo revelou-se um novo sentido existencial à usuária, advinda da arte que hoje move sua rotina. Ao discutirmos o caso coletivamente, construiu-se possibilidades de cuidado a partir do relato da usuária e das demandas identificadas no encontro, visando alargar possibilidades de vida do sujeito.
Além disso, podemos visualizar a VD como política de visitação do SUS. Adotando uma ética do cuidado, observamos a importância de uma intervenção que possa cuidar dos/as cuidadores dos/as usuários/as que relatam o impacto do cuidado e vigilâncias constantes ao/a usuário/a. A AB valoriza um cuidado ampliado e integral, abrangendo os/as usuários/as e sua família, sendo a VD uma invenção potente nesse processo. É a partir do que se visualiza nas tessituras dos encontros que amplia-se a qualidade de vida.
Considerações finais
Por fim, percebe-se a importância de resgatar uma política de visitação, visto o maior isolamento advindo de uma pandemia e do reforço ao individualismo proposto em nosso sistema neoliberal. É necessário resgatar, ainda, uma ética dos encontros, apostando em visitas que possam potencializar a potência de vida. Um bom encontro terapêutico ocorre pela avaliação das afetações, da escuta e da qualidade do cuidado obtido. Assim, nota-se a visita domiciliar como um campo revolucionário, amplo e diverso, em que traz a importância da construção de cuidado junto ao sujeito, a partir do que agencia significados e qualidade de vida ao seu modo de existir no mundo.