Interseccionalidade é um termo que há décadas vem sendo discutido na academia e mesmo dentro dessa, ainda causa estranhamento e dificuldade em acessar a raiz da terminologia. O conceito de interseccionalidade foi cunhado pela afro-estadunidense Kimberlée Crenshaw, em 1989. A intelectual negra afirma que a interseccionalidade trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Kimberlé (2002) usa o modelo de várias avenidas que simbolizam raça, gênero e outras variáveis que se entrecruzam para exemplificar as diversas opressões que atingem as mulheres negras.
Patricia Hill Collins e Sirma Bilge apontam que a “interseccionalidade é uma forma de entender e explicar a complexidade do mundo, das pessoas e das experiências humanas” (2021, p.16). As autoras pontuam que o termo é altamente utilizado nas ciências sociais e que já está consensualmente aceito como um termo que se adapta na resolução de diversos problemas ocasionados pelas diferenças. Contribuem trazendo que “pessoas comuns fazem uso da interseccionalidade como ferramenta analítica quando percebem que precisam de estruturas melhores para lidar com problemas sociais” (2021, p.17). Para as mulheres negras, a interseccionalidade é usada como ferramenta analítica uma vez que, diferentemente das mulheres brancas, as específicas opressões a que estão sujeitas as colocam em situações diferenciadas (COLLINS;BILGE, 2021).
Em que pese o termo interseccionalidade tenha sido amplamente conhecido pela afro estadunidense defensora dos direitos humanos - Kimberlé Williams Crenshaw (2002), que o definiu como sendo a forma em que diversas categorias como racismo, o patriarcalismo, divisões de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades que irão oprimir mulheres, raças e etnias, na nossa Améfrica Ladina, Lélia Gonzalez (2020) e Sueli Carneiro (2003) já denunciavam o entrecruzamento de opressões – raça e gênero - para as mulheres negras, anteriormente ao período dos anos 2000.
O Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do RS, campus Alvorada está localizado na periferia da cidade de Alvorada/RS e oferece diversos cursos de ensino médio, técnico, tecnológico e cursos de graduação. O grupo de pesquisa Afetações, em que participam estudantes e docentes dos diversos cursos ofertados pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do RS, campus Alvorada e também estudantes e docentes de outras instituições, realizou um debate sobre interseccionalidade, tendo como base três textos das autoras supracitadas. Dessa maneira, o objetivo desse texto é relatar o diálogo produzido pelo grupo e a narrativa produzida com as impressões que marcaram as falas nesse encontro, na perspectiva de quatro participantes, duas mulheres negras e duas mulheres brancas.
Metodologia
Foram selecionados três textos para serem trabalhados pelas/os integrantes do grupo. A escolha dos textos não foi aleatória, pois a intenção era de que cada um deles abordasse o conceito de interseccionalidade, a partir de autoras diferentes, brasileiras e de outras países. Compuseram a escolha um texto de autoria da intelectual negra Kimberlée Crenshaw, um capítulo do livro Interseccionalidade das autoras Patrícia Hill Collins e Sirma Bilge (2021) e um capítulo do livro Interseccionalidade, de autoria da intelectual negra Carla Akotirene (2019).
Foram divididos os três textos e cada dupla ficou responsável pela leitura de um texto. A discussão sobre o conteúdo aconteceria no dia marcado para a reunião do grupo.
Importante destacar que o grupo Afetações é formado por diversas integrantes, de cor autodeclarada preta, parda, indígena e branca. No dia do encontro em que seriam discutidos os textos, participavam três mulheres negras, um homem negro e 4 mulheres brancas. Algumas integrantes do grupo estavam online no dia da reunião; outros componentes do grupo estavam reunidos presencialmente na sala de reuniões, no campus Alvorada.
Resultados e discussão
A discussão foi iniciada com a proposição de apresentar o conceito de interseccionalidade, de acordo com os textos selecionados para leitura. Houve um certo delay para que algum/a participante se pronunciasse. Para iniciar o debate, uma das autoras negras autoras desse texto abre o diálogo, apresentando o texto de Crenshaw (2002) e destacando que o conceito de interseccionalidade nasce no âmbito do Direito antidiscriminatório, nos Estados Unidos da América, a partir de uma ação movida por uma mulher negra contra uma montadora de automóveis acerca de empregar mulheres brancas e homens negros e por isso, não admitir como discriminatório o fato de não ter mulheres negras no seu quadro de funcionários.
Algumas pessoas do grupo manifestaram ter tido dificuldades em compreender exatamente o conceito, por não apresentarem familiaridade com os textos escolhidos. Uma das integrantes (mulher branca) apresenta o conceito de interseccionalidade, de acordo com o que Patrícia Collins e Sirma Bilge (2021) e demonstra preocupação com as possibilidade de esvaziamento do conceito na atualidade.
Outra integrante (mulher negra) relembra o que Carla Akotirene (2019, p.24) nos traz: “é da mulher negra o coração do conceito de interseccionalidade” e que se atualmente o conceito tende a perder sentido, certamente a branquitude (Cardoso,2010) está fazendo uso indevido do conceito, sem aprofundamento das discussões. A integrante continua apontando que o conceito nasceu do feminismo negro, de uma intelectual negra e se constitui em uma ferramenta analítica para demonstrar o entrecruzamento de opressões a que estão expostas mulheres negras, indígenas e outros grupos de mulheres colocadas em situação de subalternidade. Esvaziar o conceito é uma das manifestações do racismo.
Uma das bolsistas do grupo problematiza com a questão: Quem de nós pessoas negras nunca ouviu o relato de uma mãe, tia ou avó que tenha relatado que sofreu racismo de forma explícita ou velada, do mais sutil (se é que isso é possível) às formas mais cruéis? Racismo é uma ferida que não cicatriza, pois só quem tem a raça como paradigma de ser aceito ou discriminado sabe o quanto isso é um retrocesso histórico e humano É possível ouvir as vozes embargadas dessas mulheres, ainda que desviem o olhar para que não possamos observar seus olhos marejados.
Considerações
O acesso às reflexões dessas mulheres negras intelectuais, Kimberlé, Akotirene, Patricia Collins e mais mulheres que trouxemos para dialogar, foi proporcionado às outras mulheres negras do grupo uma estratégia para forjar resiliência e resistência diante do racismo de cada dia.
E para aqueles que se dizem ativistas antirracistas, aí vai uma mensagem: Chega de se esconderem atrás de bandeiras militantes! Precisamos mostrar o espelho para os narcisos. Se são tão bons em discursos, que façam desses suas práticas.
Somos de várias gerações no grupo e rompemos o silêncio, cada uma em seu tempo. Reconhecemos que temos muito a aprender com as mais velhas e muito a dizer às mais novas. Nossas gerações anteriores sangraram com o racismo e nós, negras e negros, ainda sangramos com ele.