O acolhimento emergiu como uma diretriz da Política Nacional de Humanização (PNH) da Atenção e Gestão do SUS, instituída pelo Ministério da Saúde em 2003. De acordo com a segunda edição da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), publicada em 2011, a atuação das enfermeiras na APS abrange ações dirigidas aos indivíduos, famílias e comunidade. Desse modo, a atuação da enfermagem se articula à construção de um território da saúde que, também, é um território existencial. Em 2017, a PNAB apresenta alterações que provocam o enfraquecimento do enfoque comunitário e tem um aumento das práticas de pronto atendimento com centralidade no cuidado individual. A intensificação dos processos de precarização, desde 2016, como consequência das políticas de austeridade fiscal, faz com que o SUS passe do subfinanciamento para o desfinanciamento. Soma-se a esse contexto a crise sanitária intensificada pela pandemia da covid-19. Esse estudo tem como objetivo analisar como as práticas do acolhimento à demanda espontânea se constituíram no contexto da pandemia da covid-19, na APS. Para tal, o estudo de abordagem qualitativa se inspirou nos procedimentos do método genealógico de Michel Foucault e se apoia nas perspectivas conceituais apresentadas pelos Estudos Foucaultianos, Estudos Feministas e de Gênero e Estudos Decoloniais. O instrumento utilizado para produção de dados foi a entrevista semiestruturada, respondida por 59 enfermeiras atuantes na APS no RS, entre novembro de 2020 e fevereiro de 2021. Quanto aos aspectos éticos deste estudo, o projeto matricial foi aprovado pelo Comitê de ética em Pesquisa da Universidade de Brasília (CAAE: 20814619.20000.0030). No Rio Grande do Sul foi aprovado pelo Comitê de ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) (CAAE: 20814619.2.3025.5347) e pelo Comitê de ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre (CAAE: 20814619.2.3031.5338). Organizar os serviços da APS com foco no atendimento da demanda espontânea gera sobrecarga nos serviços da APS e impossibilidade da longitudinalidade e integralidade do cuidado à saúde. Como resultado, mostra que organizar o trabalho na APS com foco na demanda espontânea gera sobrecarga para as enfermeiras, tendência à individualização e práticas de cuidado que promovem a medicalização da vida, além do enfraquecimento da capilaridade nos territórios e das redes comunais de solidariedade. Nesse sentido, a ideia força corpo-território, criada pelos movimentos das mulheres indígenas, vem inspirando os Estudos Decoloniais em articulação com os Estudos Feministas e de Gênero, como modo de luta pelo acesso às determinações sociais da saúde. Pois o corpo-território envolve a defesa e o cuidado com o comum. Ao operar a inversão do regime de verdade neoliberal da escassez, a ideia força do corpo-território afirma que a pobreza é uma produção empreendida pelo modelo de mundo capitalista e sua atual versão neoliberal.