Uma emergência de saúde pública é caracterizada por uso urgente de medidas de prevenção, controle e contenção de riscos, danos e perigos para a saúde pública, em determinadas circunstâncias. Elas podem ser de caráter epidemiológico (surtos e epidemias), consequência de desastres ou de falta de assistência à população. Um caso extremo, recente e ainda em voga no nosso dia-a-dia é a pandemia do novo Corona vírus (COVID 19) e suas consequências no cotidiano em nível global.
Ao pensar o momento temporal/político/cultural que recepciona a pandemia de Covid-19 é fundamental pensar enquanto os entrelaços vividos foram indissociáveis às respostas e consequências locais da pandemia. Ao pensar a conceituação de vulnerabilização dos corpos proposta por Buttler devemos reconhecer que há precariedades politicamente provocadas para acentuar a mesma vulnerabilidade constitutiva.
Em um país como o Brasil é impossível desassociar as recepções da pandemia ao seu histórico marcado pelo colonialismo, imperialismo, neocolonialismos ainda vigentes, e ditaduras ainda recentes. Assim, em um país marcado pela anistia de violências coloniais, crimes ditatoriais e busca por padrões internacionais à onda de “Fake News”, discurso de ódio, negacionismos que vivemos concomitante ao crescimento da pandemia no país são normalizados e anistiados por uma grande parcela da população.
As falas de um presidente com uma agenda genocida e etnocida referindo-se a doença como uma “gripezinha” e dizendo que não é “coveiro”, afirmando sequencialmente que não era uma problema seu e que nada podia fazer, na gestão de uma pandemia são fundamentais para entendermos as formas que a Covid-19 afetou o país. A fragilidade frente à pandemia foi amplificada devido à abordagem política da administração de Bolsonaro, que minimizou a gravidade da doença, recusou-se a adquirir vacinas e atrasou sua distribuição quando finalmente estavam disponíveis. As mais de 600 mil vidas perdidas em quase dois anos de pandemia foram resultado direto da postura genocida do Estado, que também perpetua desigualdades raciais e de gênero diante das adversidades causadas por fenômenos tidos como naturais, como as frequentes enchentes e secas que afetam sobretudo os grupos marginalizados pelo sistema capitalista originado da colonização.
No entanto, vale citar que não é suficiente responsabilizar somente uma administração governamental em vigência à época, se não admitimos que o próprio aparelho estatal subsiste para preservar o sistema capitalista e colonial de exploração. Responsabilização esta que está em todas as gestões do Estado em maior ou menor grau. Desta forma, o Estado contribui para a intensificação da precariedade, inicialmente, ao expor extensos segmentos da população a várias formas de violência; e posteriormente, de forma cruel, empurrando essas mesmas populações a dependerem exclusivamente do próprio Estado. Os efeitos da pandemia do Coronavírus, agigantados pela gestão de Bolsonaro, foram e continuam sendo sentidos por grupos subalternizados pela colonialidade. Importante destacar que desigualdades sociais abissais vividas pelos grupos subalterniazados no país são históricas, muitas delas referentes a acesso a água potável, direito a moradia e trabalho digno e mesmo acesso a serviços de saúde.
Uma doença não se dá em abstrato, isolada e desconectada do mundo, mas sim, nas relações concretas e efetivas, objetivadas no modo em que estamos inseridos de produzir e reproduzir a vida. São as condições sócio históricas que determinam, em grande medida, o lugar e a relação social com a doença. Assim, cada sociedade pode ser definida pela epidemia que a ameaça e pelo modo de organizar-se frente a ela. Desta forma, a gestão política da COVID-19, um ameaça pandêmica global, como forma de administração da vida e da morte desenha os contornos de uma nova subjetividade.
Foucault utilizou a noção de “biopolítica” para falar de uma relação que o poder estabelecia com o corpo social na modernidade. Assim, Biopolítica está na busca pela proteção imunitária dos corpos por meio de dispositivos de poder. O paradoxo da biopolítica é pensar que: todo ato de proteção implica uma definição imunitária da comunidade, segundo a qual ela dará a si mesma a autoridade para sacrificar outras vidas, em benefício de uma ideia de sua própria soberania. O estado de exceção é a normalização deste paradoxo insuportável.
A imunidade corporal, desta forma, não é um mero fato biológico independente de variáveis culturais e políticas. É justamente o contrário: o que entendemos por imunidade se constrói coletivamente através de critérios sociais e políticos que produzem alternativamente soberania ou exclusão, proteção ou estigma, vida ou morte.
Nesse sentido, a pergunta base deste trabalho “quais vidas podem ser vividas na contemporaneidade?” é uma pergunta voltada tanto para o sistema capitalista em que vivemos e que tornou possível a pandemia de COVID-19 e suas respostas micropolíticas, mas também ao neocolonialismo em voga, principalmente no território base para o presente trabalho.
O que Esposito classificou como mecanismo imunitário foi analisado na biopolítica como a decisão de fazer viver e deixar morrer de infecção pelo novo coronavírus em função da ausência de imunidade biológica, de imunidade no sistema de recursos e políticas sociais e de contratualidade na configuração dos países e de cidadania face à pandemia por Covid-19. Ter imunidade não é meramente uma natureza biológica, implica em estar em menos precariedade, como delimitou Butler ao conversar sobre os quadros de guerra e as vidas precárias, em dois livros que escrevera com relevantes análises a respeito das vidas inelutáveis e daquelas consideradas como dignas de luto em função dos recortes de valoração dos corpos, no presente.
Percebemos, com isso que, se um dia se falou em “afirmação da vida”, nos termos biopolíticos (mesmo que sejamos desconfiados de tal assertiva), em nossa nação, pouco percebemos analiticamente de tal ensejo. O que há, na verdade, é um exercício do biopoder que fere, marca, exclui, oprime, coage e mata, muito mais rápida e expressivamente do que àquele que mantém a vida, que dá saúde, que a potencializa.
A ação “diferenciadora” do novo coronavírus atestaria uma necropolítica, na medida em que é potencializadora das dificuldades práticas de se lidar com o mesmo, escancarando um modus operandi de deixar morrer. Para entendermos bem, uma destas dificuldades gira em torno da necessidade de se ter respiradores artificiais em quantidade suficiente à disposição para quem deles necessitasse, pois o Covid-19, como conhecido, compromete o sistema pulmonar/respiratório dos acometidos. No entanto, o acesso seletivo aos respiradores e aos leitos das unidades de tratamento intensivo (UTIs) é filtrado por supostos fatores de risco e critérios de valoração da vida.
Assim, a Pandemia do novo Coronavírus é uma crise bastante corrosiva, não apenas à saúde dos cidadãos de diversos países, mas ao nosso próprio modo de vida, em uma sociedade marcada pela ideia de empreendedorismo e de cobranças por extrema produtividade, baseada na racionalidade neoliberal. Os diversos países do mundo sentiram os efeitos nefastos da pandemia de forma diferente, em função das histórias de cada um deles e pela conjugação de um conjunto de práticas: econômicas, sociais, culturais e políticas. No caso brasileiro em que pese a péssima gestão da crise, ainda foi possível algum grau de enfrentamento pela ação do sistema único de saúde com todas as suas dificuldades. E vale então entendermos essas especificidades para não correr o risco de uma universalização das experiências. Trazendo a tona o conceito de Sindemia, uma vez que relacionamos o novo Coronavírus, com outros fatores de vulnerabilidade pré-existentes ou mesmo ampliados pela doença.