Entendemos aqui o colonialismo enquanto o momento de exploração político e administrativa que separou entre impérios e colônias, uma estrutura de dominação e exploração históricas dos povos. Nos dias de hoje, mesmo não havendo explicitamente estas separações e explorações, ainda há formas de manutenção desta lógica colonial, que aqui conceituamos enquanto colonialidade, ou mesmo neocolonialismo. No entanto, vale citar que o colonialismo, para além de ser a base da colonialidade, também é alicerce de outras estruturas dominantes no momento atual, tal qual o cristianismo, capitalismo, patriarcado, racismos, assim como as ideias neoliberais e neoimperialistas.
A colonialidade envolve estruturas de poder, saber e ser. É a continuidade do uso do poder e da hierarquização das relações, criando intrinsecamente um “outro”, o “subalterno”. Assim, temos a colonialidade: do poder, como a manutenção de sistemas de opressão e dominação; do saber, ao instituir normas e conhecimentos universalizados e do ser, ao influenciar como nos vemos e subjetivamos à partir deste imaginário criado. Sendo assim, todos estes elementos compõem diferentes e interligadas formas de dominação e hierarquização de um sujeito universal, para com o “outro”.
A partir dos conceitos de colonialidade, colonialismo e neocolonialismo, discutidos neste trabalho, é central pensar em seus efeitos nas subjetividades que encontramos em diferentes espaços. A colonização é feita e sentida de diferentes formas, espaços e tempos, sendo fundamental levar em questão a regionalização e historização de cada local, comunidade e grupo que analizamos. Assim, surgem os conceitos de decolonialidade, descolonialidade, anti-colonismo como lutas que surgem para apresentar possibilidades de contraponto às formas de dominação da colonialidade. Não conseguimos refazer as formas de reverter o colonialismo, mas podemos pontua-los, criticá-los e pensar formas atuais de mudanças, resistências e lutas. Neste trabalho o enfoque será no território amazônico e suas vicissitudes culturais, espaciais e temporais de viver e habitar os territórios.
Nesse sentido, vale citar que o controle europeu sobre suas colônias não foi obtido exclusivamente a partir do genocídio biológico e supressão por meio da força bélica, mas exigiu fundamentalmente um elemento ideológico ou “representacional”: epistêmico-cultural. Ou seja, a dominação de um discurso sobre o outro e a incorporação do discurso do dominador sobre a a subjetividade dos dominados, de modo que o poder econômico e político da Europa sobre suas colônias tornou-se possível. Assim, uma face ainda não citada do colonialismo é o epistemicídio, a subjugação de outras formas de saber e ser.
Como diz Maldonado-Torres, respiramos cotidianamente colonialidade na modernidade. Assim, os binômios são constantemente entrelaçados, tanto a modernidade quanto o colonialismo utilizam como base a universalização histórica. Uma história local se torna um projeto global e estabelece um local particular como centro do poder geopolítico, como o exemplo clássico do eurocentrismo ou mesmo as novas formas de neocolonialismo que os os Estados Unidos tentam impor como centro econômico-político-cultural do mundo atual.
Além da universalização das práticas, outro projeto político da modernidade/colonialidade está na neutralização da ciência. Assim, constrói-se um imaginário social acerca de uma ciência universal e neutra, que pode ser aplicada a todos indistintamente. Entretanto, tal compreensão desenvolve uma concepção de ciência a-histórica, maquiando sua produção como uma elaboração que parte de tempos históricos e sujeitos específicos, que detém o poder científico, ditando o certo/errado, normal/patológico. Nesse sentido, rejeitar a intenção ou destinatário da ciência, na prática, acaba por aplicá-la a serviço dos interesses hegemônicos, visto que todo produto histórico inevitavelmente favorece um dos lados dos conflitos sociais no jogo. É o risco da história única como nos ensina Adichie (2009). Assim, todo pensamento homogeneizador é problemático, totalizador.
Tal expressão também se manifesta no âmbito da saúde, por exemplo, no qual modos de interação com o mundo e epistemologias não-europeias – como de povos originários das Américas – foram historicamente subjugadas e aniquiladas enquanto incorretas, em mais uma forma de epistemicídio a partir da imposição de lógicas e divisões binárias, próprias do cartesianismo, tais como: sujeito-objeto, homem-natureza, saúde-doença.
Contemporaneamente, olhar para as práticas de colonialidade é falar de um “sul global” enquanto categoria subalterna no mundo pensando às categorias de poder, saber e ser. O Brasil está incluído dentro do “sul global”, ou seja, subalterno ao eurocentrismo, ou mesmo aos países ditos desenvolvidos. Assim, utilizamos moldes considerados hegemônicos no nosso cotidiano cada vez mais ampliados com o crescimento do capitalismo e globalização.
O que se observa é a continuidade da existência de normas coloniais no sistema-mundo capitalista dominado por potências hegemônicas. A estratégia de colonização e colonialidade é mantida e submetida nas relações básicas e cotidianas, como neocolonialismos. Como estratégia de colonização e do próprio capitalismo atrelado, temos financiamentos reduzidos em locais “subalternos”, apenas para depois possibilitar intervenções e discursos que partem de um lugar de saber sobre o outro, em posição de “salvador”, uma estratégia clássica de dominação: colonialidade do poder, saber e ser. Vemos isso nas lógicas político administrativas que foram a manutenção dos impérios-coloniais na colonização, mas ainda nos dias de hoje em relações dentro do próprio país, onde o poder, saber e ser está majoritariamente colocado nos eixos sul e sudeste, de forma que regiões como Norte e Nordeste tem seus conhecimentos constantemente invisibilizados e desenvolvimentos prejudicados.
Os problemas, vivências, subjetividades, falas, etc. encontrados no Norte e Nordeste são considerados de cunho regionais, locais, já os do Sul e Sudeste são considerados como nacionais e universais ao Brasil. Dessa forma, a visibilização das dores e marcas coloniais e neocoloniais são um passo importante para a reafirmação de grupos historicamente marginalizados. Sendo assim, é possível realizar um resgate de justiça e memória que são fundamentais para o que se integra hoje enquanto saúde.
A divisão arbitrária do mundo em Ocidente e Oriente, realizada pelo discurso ocidental, que concede a si mesmo a legitimidade para se representar e representar ao outro, é o que conceituamos neste trabalho enquanto colonialismo ainda vigente nas formas de neocolonialismos no dia-a-dia, mesmo dentro de uma própria divisão de um país marcado intrinsecamente pelo colonialismo. Ao mesmo tempo em que o Brasil encontra-se em um “sul global” como país colonizado o Norte brasileiro é conceituado enquanto “sul global” do país, em que é invisibilizado em suas produções científicas, bem como atuando com recursos escassos ao falarmos em regionalização da saúde – princípio fundamental do nosso Sistema Único de Saúde.
Partindo dessa compreensão, afirmamos que não devemos apenas buscar uma libertação em um sentido macropolítico, mas também pensar nas possibilidades do fazer nas micropolíticas, possibilitando, assim, não reproduzir uma monocultura do saber. Desta forma, ao pensar as possibilidades e necessidade políticas e epistêmicas da decolonialidade para o processo de libertação dos povos e culturas permeados pela colonialidade, devemos pensá-la em três aspectos: a decolonialidade do poder, do saber e do ser.
Assim, a possibilidade de pensar a Amazônia brasileira é uma forma de permitir outras maneiras de contar a história, outras formas de organização da vida e dos saberes, bem como a produção de novas subjetividades que não carreguem a herança dos padrões coloniais de poder que seguem vigentes na sociedade, desconstruindo assim, uma matriz colonial, mesmo que intra-país. Resgatar narrativas e histórias da nossa ancestralidade, escutar nossos povos originários e preservar a memória cultural de nossa região é forma de afirmação da vida e de luta contra os epistemicídios, estabelecendo novas formas de relação entre seres, saberes e poderes.