APRESENTAÇÃO
Na contemporaneidade, observamos um fortalecimento do paradigma da humanização na assistência ao parto em um contexto onde há aumento da mortalidade materna e nas denúncias de violação de direitos das mulheres no período gravídico-puerperal. O partejar é conjugado em campos de disputa de poder, onde o modelo hegemônico biomédico se constitui na especialização do cuidado, na ênfase do processo saúde-doença sob a perspectiva curativa, girando em torno da figura do médico. Esse cenário também se consolida a partir das regulações do Estado que produz, ordena e administra a vida segundo seus interesses ideológicos, políticos e econômicos.
Trazer as parteiras como protagonistas em um cenário onde a humanização do parto e seus atores encontram-se em evidência, parte do pressuposto de um acirramento na fragmentação do próprio nomear-se parteira que constitui-se por marcadores de gênero, raça, geração, territórios como: parteiras tradicionais, urbanas, hospitalares, práticas, domiciliares. Nomes que demarcam lugares e que merecem um olhar diligente e crítico.
Dessa forma, voltamos nosso olhar a Revista Brasileira de Enfermagem (REBEN), e nos debruçamos sobre suas fontes de referência que legitimam a produção de conhecimento no campo da Enfermagem desde 1932, com os seguintes questionamentos: Como as parteiras são apresentadas em suas publicações? Quão vivas suas vozes estão na produção científica? Este trabalho foi costurado a fim de (re)criar inquietações e desassossegos que possam contribuir para desvelar outras significações sobre as parteiras e reconhecer sua importância enquanto sujeito de resistência diante do sistema dominante.
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo de revisão da literatura, ancorado nos aspectos das ciências sociais em saúde. A busca pelos arquivos virtuais da REBEn ocorreu por meio dos descritores “parto” e “parteiras”. Não houve delimitação de idioma e o período de busca abarcou todas as publicações disponíveis on-line dos anos 2000 até 2023. A abordagem utilizada para analisar o material encontrado foi inspirada no conceito de hipótese de leitura, conforme descrito por Palamidesi e inspiradas nas ideias de Foucault e Bordieau.
RESULTADOS
Como resultado, encontramos 10 artigos publicados entre os anos 2000 a 2022. Nas últimas décadas, houve um declínio nas publicações e estudos envolvendo as práticas e saberes das parteiras dentro do hall de estudos publicados na Revista Brasileira de Enfermagem (REBEN). Esses artigos carregam em comum o debate sobre a parteira capacitada, institucionalizada e munida de conhecimentos biomédicos que muitas vezes se associa a prática da enfermagem. Como lacuna identificamos que a revista deixa de abordar o conhecimento empírico e tradicional das parteiras indígenas, caboclas, ribeirinhas ou advindas de comunidades periféricas, sinalizando que o fazer científico da enfermagem ainda não voltou seus olhos às práticas históricas e culturais dessas populações, restringindo o olhar, no decorrer desta análise, aos aprendizados “autorizados” pela tutela da ciência biomédica dentro das discussões aqui produzidas.
DISCUSSÕES
O conhecimento das parteiras, embasado em experiências e práticas repassadas de geração a geração, pode ser considerado um saber informal, não sistematizado como o conhecimento científico acadêmico. É uma prática tradicional, revestida pelo sentido do cuidado, tanto pelos saberes científicos como pelo senso comum, com o objetivo de assegurar o bem-estar materno-infantil durante o processo do parto. Suas práticas se situam na fronteira entre o saber científico e o senso comum, trazendo uma epistemologia singular sobre o cuidado e a saúde materno-infantil.
As parteiras enfrentaram históricos desafios para terem seus saberes reconhecidos e respeitados, uma vez que não precisam do respaldo da ciência positivista para existirem. A luta contra a imposição de regulamentações e a segregação entre as que atendiam diferentes classes sociais são exemplos dessas dificuldades, sendo alvo de uma série de controvérsias, preconceitos e disputas de poder que marcaram a sua trajetória histórica no campo científico.
As parteiras tradicionais, frequentemente mulheres mais velhas e de comunidades distantes, foram acusadas de praticar feitiçarias, provocar abortos e até mesmo cometer infanticídio. Acusações, muitas vezes infundadas, serviram como justificativa para a supressão de seus conhecimentos e a marginalização de suas práticas. À medida que a medicina se consolidava como uma instituição, a sabedoria das parteiras começou a ser questionada e desacreditada. A saúde encontrou-se em processo de definição pelas demandas dos doentes, convertendo-a em um objeto de intervenção médica, se impondo ao indivíduo, doente ou não, com ações autoritárias.
A transição do parto empírico, conduzido por parteiras, para o institucional, nos hospitais, trouxe consigo uma série de efeitos. O processo de institucionalização visava controlar e certificar as parteiras, criando uma segregação entre aquelas que atendiam mulheres pobres e as da nobreza. A política higienista, propagada pela medicina, também contribuiu para estigmatizar as parteiras, acusando-as de causarem infecções e promovendo uma campanha para deslegitimar sua prática.
As disputas de poder no âmbito da obstetrícia foram marcadas por dispositivos de cultura, raça, gênero e classe. Os médicos assumiram o papel central no nascimento, relegando as parteiras a uma posição secundária como meras auxiliares. Essa perda de poder e autonomia teve um impacto significativo nas práticas das parteiras, que foram gradualmente substituídas por profissionais da medicina. Essas mudanças que não se referem apenas às práticas, mas em estruturas e relações de poder resultaram na objetificação dos corpos das parturientes, onde a autonomia dessas mulheres foi gradativamente diminuída, apontando para uma interface entre intervenções, disputa profissional, violação de direitos das mulheres e o espaço físico onde o partejar se desdobra.
O fazer das parteiras, que antes se baseava em práticas e saberes específicos transmitidos oralmente e pela experiência, foi sendo gradativamente substituído por cursos especializados, naturalizando intervenções como a episiotomia e buscando padrões a assistência ao parto. Essa mudança trouxe o predomínio dos partos hospitalares, deslocando a cena do nascimento dos lares para o ambiente clínico com a roupagem de um parto adequado e limpo.
A inserção da parteira nas equipes hospitalares seguiu a cartilha do paradigma da assistência especializada, onde discurso da cientificidade se mostra como dispositivo de controle e submissão À parteira tradicional é dada a opção de acompanhar a mulher no parto em um espaço dito “humanizado” caso siga as prescrições. Isto, configura-se em um silenciamento que também se estender à sua sobrecarga laboral nas equipes do hospital. As parteiras “hospitalares”, embora haja regulamentação enquanto categoria profissional, exercem suas atividades em ambientes inadequados, acumulando atribuições de outras trabalhadoras, como as enfermeiras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É importante ressaltar que, ao longo das discussões, desmistificamos as hipóteses levantadas sobre os achados em relação a apresentação das parteiras, por serem dotadas de práticas e saberes tradicionais, esperávamos que esses aspectos fossem evidenciados nas literaturas. Contudo, encontramos artigos que enfatizam a “institucionalização” do partejar e sua busca por humanização, sempre interligada à prática profissional médica e de enfermagem, deixando os saberes tradicionais como características históricas que, mesmo não eximida, é em um cenário de inferioridade mediante a ciência.