O presente trabalho é um relato coletivo fruto da experiência de um estágio voluntário em Psicologia em uma associação de usuários/as dos serviços de saúde mental no município de Assis (SP). Pretende-se divulgar as impressões a partir das experiências compartilhadas na "Banda Loko na Boa" formada por estudantes de psicologia da UNESP, usuários e usuárias do CAPS II "Ruy de Souza Dias". A formação atual da banda conta com oito usuários, divididos entre vocalistas e percussionistas, além de três estagiários: um baixista, um guitarrista e um percussionista. A maioria das canções do grupo foram compostas pelos próprios participantes e se baseiam em críticas ao manicômio e à medicalização, embora o grupo também cante sobre outros assuntos, dado que os temas mencionados são bastante sensíveis para parte dos integrantes.
A banda iniciou suas atividades em 2002 enquanto oficina de música no CAPS e, com o tempo, emancipou-se desse cenário, com apresentações locais e internacionais. Entre pausas e recomeços desde 2009, realiza ensaios no "Ponto de Cultura Galpão Cultural", um espaço autônomo organizado por diversos coletivos relacionados à arte. Neste texto, espera-se aprofundar a discussão a respeito das potencialidades e desafios do uso da música enquanto um dispositivo político e de cuidado em saúde mental. Destaca-se que essa é uma estratégia utilizada Brasil afora por variados grupos ("Harmonia Enlouquece", "Loucura Suburbana", "Trem Tan Tan", etc), os quais também se inserem na dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica.
A Banda Loko na Boa preconiza, desde sua formação original, diferentes funções sociais. Em primeiro lugar, trata-se de um dispositivo de cuidado em saúde impulsionado pela inclusão de sujeitos marginalizados na sociedade, mediante um processo de afirmação de suas cidadanias, do respeito às subjetividades e do incentivo à expressão artística, no caso, da voz, do corpo e da escrita.
À vista disso, acreditamos no potencial de compreensão e ressignificação do sofrimento pelo próprio sujeito dado através da arte, um potente instrumento de vinculação, entretenimento e propiciador da formação de uma identidade comum, que reforça laços de amizade e motivam os usuários a continuarem em processo de tratamento. Essa atividade não se trata apenas de música - ela orienta uma construção coletiva de saúde, daquilo que pode ser entendido como uma "produção de vida", ou melhor: do incentivo ao desenvolvimento de talentos, aptidões e autoestima .
Além disso, a banda tem como objetivo florescer as capacidades desses sujeitos no que diz respeito à contratualidade também fora dos serviços de saúde, isto é, à potencialidade de emitir opiniões e firmar acordos nos mais variados âmbitos da vida cotidiana. Embora tudo isso já seja político, podemos pensar agora nas consequências culturais mais imediatas deste trabalho, que se voltam para reorientar as perspectivas sobre a loucura, mais especificamente, no plano do senso comum.
Em segundo lugar, destacamos que a banda trabalha por mudanças sociais amplas. Podemos dizer que ela se ocupa em transformar como a loucura é encarada pela sociedade, deslocando um viés curativista e individualizante, pautado no paradigma biomédico, em direção a um entendimento humanizado com um olhar acolhedor para a diferença. Afinal, não nos interessa integrar sujeitos em sofrimento psíquico ao mundo capitalista e suas estratégias de biopoder, é preciso questionar os modos de produção, expressar indignação contra o sistema de violências e desigualdades, pois isso também é terapêutico.
É nesse sentido que salientamos a importância de habilitar a sociedade para acolher os universos particulares dos indivíduos em sofrimento psíquico. Essa tarefa proposta pela banda se dá através de suas apresentações e letras, da compreensão e mobilização do público pelas formas de expressar afetos dos componentes do grupo, e superando os estigmas presentes no convívio social que violentam, patologizam e medicalizam vidas. Têm sido de suma importância uma atuação territorializada, visando o alcance da comunidade e atravessando-a em todas as suas instâncias (família, escola, religião...). Desse modo, as apresentações da banda são responsáveis por transferir o sujeito de um "não-lugar" para a ocupação de um novo status social: o de artista e produtor inserido nas trocas sociais. Essa posição confronta, permanentemente, as forças que avaliam o louco como improdutivo, vagabundo, incapaz e periculoso.
Referente às músicas, em sua maioria autorais, evidencia-se a potencialização da voz desses usuários em uma luta política por direitos e denúncias das opressões vividas. Através das obras originais nota-se claramente uma forte crítica ao modelo medicocentrado e hospitalocêntrico de cuidado, a que muitos da banda estiveram submetidos (portanto, é natural que nem todos os usuários se sintam à vontade em cantar sobre aquilo que tanto os fez sofrer). Assim, muitas das canções representam uma mudança de perspectiva em relação aos remédios psiquiátricos como única alternativa de tratamento, delatando as agressões e silenciamentos próprios do paradigma hegemônico em saúde mental. Em nosso repertório atual, existem quatro músicas escritas por componentes da banda, cujas características encaixam na descrição acima. Elas são: "Psicologia", "Yeh-Yeh", "Remédio Não é Bala" e "Tô de Olho no Doutor".
Entendemos que a experiência da banda ressalta um modelo de cuidado ético, estético e político centrado no usuário e não somente em seu sofrimento, como também busca potencializar a voz e a vivência subjetiva. Apesar da boa participação e identificação dos usuários com as letras originais, destacamos que não é possível universalizar essa experiência, dado que cada um desses sujeitos possui uma vivência singular. Com as apresentações, a banda fica ansiosa para ser vista, ouvida e notada, ter palanque para falar e denunciar os modos de tratamento vividos é fundamental para os usuários.
Elas reforçam em nós, enquanto grupo musical, o compromisso de executar um bom trabalho, uma vez que é necessário que os shows sejam tecnicamente bons para que o público supere o preconceito de nos assumir enquanto "a banda dos louquinhos e de seus cuidadores", mas receba principalmente os usuários como protagonistas de um projeto competente. Os dias de show são, assim, os mais intensos, mas ao mesmo tempo, os mais gratificantes: eles simbolizam a celebração de um trabalho semanal, da possibilidade de escrever a própria história em liberdade, do entusiasmo de estar vivo e potente em um grupo onde alguns viveram o abandono e, por muito pouco, não conheceram a morte. Do ponto de vista dos estagiários, estar no palco com tais pessoas é uma honra e um privilégio, e escutar as histórias de quem as viveu nos bastidores mobiliza ainda mais do que as ouvir em sala de aula.
Por fim, destacamos que o texto visou discorrer sobre a banda Loko na Boa em seus aspectos de produção de saúde e de emancipação política. Nesse sentido, ainda existem uma série de desafios macro e micropolíticos no que tange às medidas do Estado voltadas para a saúde mental da população nas suas diversas dimensões (como a dificuldade de manutenção dos ensaios e de profissionalizar os shows, por exemplo). Como pontuado anteriormente, a saúde mental desejada pode ser entendida pela potência e autonomia dos sujeitos e dos territórios que esses compõem. Para tanto, é necessário envolver não só o fornecimento de medicamentos ou atendimento multiprofissional, mas também o combate à opressão e ao preconceito, o acesso às condições concretas para a produção de arte, lazer, escuta e laços comunitários.