Apresentação: o município de Macaé, no interior do Rio de Janeiro, teve sua economia pautada no trabalho escravo durante séculos. Entretanto, com o tempo, o munícipio se tornou caracterizado por dois extremos: o sul, de indivíduos de maior poder aquisitvo; e o norte, de bairros periferizados e de indivíduos negros e pobres. Enquanto cursava o segundo período de medicina no Centro Multidisciplinar UFRJ-Macaé, realizei aulas práticas - através da disciplina Saúde da Comunidade II - numa Unidade de Pronto Atendimento (UPA) localizada no norte de Macaé. Com isso, fui confrontada com situações que evidenciaram os desafios salutares e sociorraciais enfrentados pelos pacientes atendidos no local. Nesse sentido, tendo em vista a minha formação sociopolítica enquanto negra e periférica, este trabalho objetiva relatar minhas experiências nessa unidade de saúde, analisando as dinâmicas entre profissionais da saúde e pacientes e seus impactos no cuidado destes indivíduos e na formação dos futuros médicos que ali estudam. Desenvolvimento do trabalho: ao todo, 14 estudantes de medicina realizaram visitas, de duas horas de duração, nas terças-feiras entre os dias 17 de outubro e 7 de novembro de 2023. Inicialmente, reparamos a estrutura precária daquela UPA, inadequada para pacientes e profissionais. Também pude constatar que boa parte dos pacientes eram mulheres negras, aparentemente de classes sociais mais baixas, e que a maioria dos médicos e enfermeiros eram brancos, enquanto a maioria dos funcionários da limpeza e dos pedreiros eram negros. Ao acompanhar as recepcionistas, reparei que as fichas eram incorretamente preenchidas, sobretudo o campo "cor/raça”, pois os pacientes não eram questionados quanto a sua autodeclaração racial. Além disso, a maioria dos profissionais constantemente destacavam episódios de violência por parte do público atendido, o caracterizando, de forma generalista e preconceituosa, como extremamente vulnerabilizado e sem livre direito de ir e vir de suas comunidades, devido ao crime organizado. No último dia, após 4 semanas sendo expostos a tais discursos, ao ver uma ficha preenchida de forma incomum, imediatamente considerei a ligação do paciente a ilegalidades; e, ao acompanhar a farmácia do local, após uma técnica administrativa citar que o setor era foco frequente de confusões, pois muitos pacientes insistiam em receber medicamentos sem seus documentos, uma aluna perguntou se eles não portavam identificação por estarem “envolvidos com algo”. Resultados: no decorrer de todas essas cenas, o racismo estrutural se faz presente, especialmente nos discursos dos profissionais de saúde, os quais refletem a marginalização histórica sofrida pelos moradores do norte de Macaé. Tais falas racistas se tornam especialmente alarmantes ao se considerar a desumanização sofrida por esses pacientes - a qual prejudica em seus processos saúde-doença-cuidado - e ao analisar sua influência negativa na formação dos estudantes de medicina que as interiorizam, pois estes um dia serão responsáveis pelo cuidado de pacientes semelhantemente marginalizados. Considerações finais: a partir das experiências analisadas, torna-se evidente que o histórico escravocrata da região repercute no racismo sistêmico hoje encontrado na UPA em questão, cujas relações interpessoais se fazem desafiadoras para o um sistema de saúde equitativo, humanizado e antirracista.