Apresentação: O surgimento do Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil implicou a necessidade de inserção de novas categorias profissionais para contemplar a concepção integral do cuidado. Nesse cenário, surge a justificativa para a criação das Residências Multiprofissionais em Saúde (RMS) para prestar assistência, que considere as necessidades múltiplas de saúde realizada de forma coletiva e colaborativa. Uma grande potencialidade da RMS é favorecer a construção de uma formação em saúde alinhada às necessidades do SUS centrada na integralidade do cuidado e no trabalho interprofissional capaz de superar a lógica da fragmentação dos saberes e fazeres. Este estudo objetiva compreender a percepção dos residentes dos programas de RMS quanto ao trabalho em equipe a partir da inserção nos serviços de saúde locais. Desenvolvimento: É um recorte de um Trabalho de Conclusão de Residência (TCR) sobre os desafios e potencialidades da RMS para o SUS na percepção de residentes. Trata-se de uma pesquisa qualitativa que utilizou a técnica de grupo focal para coleta de dados. Participaram da pesquisa 15 residentes dos Programas de Residência Multiprofissional da Fundação Escola de Saúde de Palmas (FESP), sendo: 7 da saúde mental, 3 da saúde coletiva e 5 da Saúde da Comunidade e da Família. Foram realizados três grupos focais, um em cada programa multiprofissional. Participaram profissionais das seguintes categorias: psicologia, odontologia, serviço social, nutrição, farmácia, educação física, medicina veterinária e enfermagem. Os dados foram analisados com apoio da Análise de Conteúdo. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Escola de Saúde Pública de Palmas, mediante parecer de número 6.328.450. Resultados: Os participantes da pesquisa apontaram fragilidade na vinculação entre equipes fixas dos cenários práticos e residentes, com relatos de pouca abertura para construção de vínculo e baixa disponibilidade dos servidores em orientar e inserir os residentes no processo de trabalho. Essa dificuldade na vinculação, por vezes, é acompanhada de tensões de diferentes naturezas que afetam a organização do trabalho e produzem fragmentações entre as equipes, conforme relatado pelos residentes: “Em uma unidade, o ACS é sempre muito raro falar com a gente, mesmo que a gente esteja disposto e aberto a tudo” (P9). Os participantes destacam ainda dificuldade de trabalhar em equipe em decorrência das diferentes lógicas de trabalho nas instituições de saúde, especialmente pela fragmentação do trabalho, hierarquização dos saberes, predominância do modelo biomédico e as resistências dos trabalhadores fixos dos serviços às mudanças propostas por novos profissionais. Somado a esses fatores, ao chegar nos cenários, os residentes citam deparar-se com trabalhadores cansados, desestimulados e adoecidos. Para analisar as dinâmicas relacionais estabelecidas descritas, consideramos importante a análise do cenário, onde ocorre a inserção dos profissionais residentes, que “no transcorrer histórico da construção do SUS, inserido em uma política pública de saúde, têm-se processos articulados às transformações do mundo do trabalho com consequências centrais aos trabalhadores”. Trata-se de reconhecer a existência de cenários atravessados pela intensificação da precarização do trabalho ,e pelo agravamento das já precárias condições de trabalho na saúde após a Pandemia de Covid-19 .
Assim, “a inserção de equipes de residentes neste âmbito oportuniza tensões de diferentes naturezas”. O debate acerca dessas tensões se amplia se considerarmos as RMS como forças instituintes indutoras de mudanças. Por isso, recorremos à análise institucional para auxiliar na tarefa de discutir as complexas relações produzidas no cenário pesquisado. Vejamos, primeiramente, alguns conceitos-chave para a nossa discussão: instituição, instituído e instituinte. As instituições “são árvores de decisões lógicas que regulam as atividades humanas, indicando o que é proibido, o que é permitido e o que é indiferente. Segundo seu grau de objetivação, podem estar expressas em leis, princípios ou fundamentos, em normas ou pautas". No interior das instituições, ocorre a dialética instituinte-instituído, sendo o primeiro a “contestação, a capacidade de inovação e, em geral, a prática política como ‘significante’ da prática social’’, e o segundo “a ordem estabelecida, os valores, modos de representação e de organização considerados normais, como igualmente os procedimentos habituais de previsão (econômica, social e política)”. Assim, os profissionais residentes adentram a instituições que já possuem suas normas, valores, modos de fazer e dinâmicas estabelecidos e incorporados pelos membros das instituições. A inserção desses novos profissionais — que se orientam por diretrizes pedagógicas que visam mudanças na formação, no trabalho e gestão na saúde — constitui um movimento instituinte que se tensiona com o instituído. Dentre estas tensões, destacam-se as forças conservadoras do instituído, surgindo na forma de resistência às novas propostas e às propostas de mudanças na lógica de trabalho, como aponta a fala de um participante: “É comum ouvir: ‘eu tenho x anos aqui, e é desse jeito que funciona’ ” (P14). Essa reação ao instituinte representa uma resistência às mudanças mobilizadas por ele, uma vez que o instituído “reflete na tendência de permanecer estático e imutável”. Ao considerar, que a própria história do SUS, especialmente a reforma sanitária brasileira, trata-se de um constante dilema entre o instituinte e o instituído, a tensão entre os cenários práticos e a RMS pode representar, inclusive, um choque entre as práticas tradicionais em saúde e um novo modelo de cuidado (baseado em uma abordagem multiprofissional), uma vez que o campo de atuação (os serviços de saúde) da RMS é marcado pela hegemonia do modelo biomédico. Por outro lado, o trabalho em equipe também é apontado como uma grande potencialidade da RMS para o cenário estudado. Assim é apontado pelo fato de o trabalho desenvolvido por profissionais residentes objetivar o desenvolvimento de práticas baseadas na multiprofissionalidade e interdisciplinaridade. A multiprofissionalidade “consiste em uma modalidade de trabalho coletivo que se configura na relação recíproca entre as múltiplas intervenções técnicas e a interação dos agentes de diferentes áreas profissionais”. Já a interdisciplinaridade em saúde ocorre “com base na interação e na integração das diferentes disciplinas de cada área”. Essa contribuição é percebida no cenário pesquisado por meio do fomento ao trabalho em equipe em uma perspectiva multiprofissional, da articulação intra e intersetorial, da proposição de ações que visem o cuidado integral do usuário e através do uso de dispositivos como a clínica ampliada, o matriciamento e o Projeto Terapêutico Singular. Os participantes também relatam notar que profissionais egressos de programas de residência em saúde e reinseridos no SUS (embora poucos) possuem maior abertura para o trabalho em equipe interdisciplinar e multiprofissional. Por fim, um fator determinante para o desenvolvimento de novas atividades nas instituições de saúde que recebem a residência é a motivação. Os participantes da pesquisa apontam que os profissionais residentes chegam aos cenários com muita motivação, desejo de desenvolver seus trabalho e curiosidade. Esse processo por vezes contagia as equipes, que se mobilizam para inserir os novos profissionais nos serviços. Considerações finais:Considerações finais: Conclui-se que embora a inserção dos residentes nos serviços seja marcada por diferentes tensões, o trabalho em equipe é transformado pela RMS, que impulsiona práticas colaborativas, multiprofissionais, interdisciplinares e alinhadas aos princípios do SUS, como estabelecido na proposta da Residência Multiprofissional. O estudo, também, aponta que profissionais egressos de programas de residência em saúde inseridos no SUS, embora sua inserção, ainda seja insignificante, possuem maior abertura para o trabalho em equipe interdisciplinar e multiprofissional.