O presente trabalho relata a experiência de ativistas sociais, principalmente das áreas da saúde e dos direitos humanos, que durante a pandemia de Covid-19 se colocaram o desafio de organizar uma entidade em apoio e defesa dos direitos das vítimas e de seus familiares e indica os desdobramentos propostos para esta militância.
O objetivo do relato, no marco do Congresso Internacional da Rede Unida, é ganhar audiência para a execução da agenda construída pelo movimento, trocar experiências com outras iniciativas similares, construindo coletivamente uma perspectiva de preparação da sociedade e de agentes públicos para o enfrentamento mais integrado e eficaz das futuras emergências sanitárias.
A pandemia de Covid-19 produziu no Brasil um fenômeno social que impactou, de forma direta e indelével, a vida de milhões de brasileiros e brasileiras. A necessidade de buscar direito à memória, à verdade e à justiça, motivou ativistas sociais e familiares de vítimas a criarem a Associação Brasileira de Apoio e Defesa dos Direitos das Vítimas da Covid-19 – Vida e Justiça.
Criada em 30 de abril de 2021, a entidade, com abrangência nacional, atua em aliança estratégica com o Conselho Nacional de Saúde, a Frente Pela Vida e a Rede Nacional por Reparação e Responsabilização às Vítimas da Pandemia. Suas atividades envolvem desde a organização de diálogos com a sociedade, através das redes de lideranças e movimentos sociais, à elaboração de propostas de políticas públicas e de legislação orientadas para a memória, a responsabilização de agentes públicos e privados por negligência ou omissão no enfrentamento aos impactos da pandemia no país, bem como por reparação às vítimas sobreviventes e aos familiares das vítimas fatais.
Já no ano de 2021, a entidade atuou em iniciativas legislativas por reparações trabalhistas, como a Lei nº 14.128/2021, que estabeleceu compensação financeira aos profissionais de saúde da linha de frente de combate à Covid-19, em caso de invalidez permanente ou morte; pela taxação de super-ricos e na elaboração do PL do Dia Nacional em Homenagem às Vítimas da Covid-19, dia 12 de março, data da morte da primeira vítima brasileira, Rosana Urbano, em São Paulo. Promoveu o Seminário Nacional pelo Direito Humano à Vacinação e dezenas de lives para disputar a narrativa anticiência e as práticas que resultaram num verdadeiro genocídio, com milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas houvesse o então Presidente da República e o Ministério da Saúde promovido, em tempo, as medidas sanitárias e farmacológicas necessárias à contenção do vírus, em especial o isolamento físico, testagem e vacinação.
Desde 2022, apoia juridicamente o GT Vítimas da Prevent Senior, para investigar atos médicos suspeitos de crimes ocorridos na empresa durante a pandemia. Também produziu ações simbólicas e de mobilização social como plantio de árvores, atos públicos, denominação de praças e memoriais homenageando vítimas. Mas a ação mais importante aconteceu em setembro, quando entregou à Mesa Diretora da CPI da Pandemia, Documento de Recomendações reivindicando que a comissão parlamentar do Senado ouvisse vítimas e familiares, fato que ainda não havia ocorrido. Em 18 de outubro, com grande repercussão nacional, o pleito foi atendido, com relatos comoventes de familiares de vítimas integrados nos trabalhos da CPI, com denúncias sobre experimentos que causaram a mortes, em hospitais da Prevent Senior.
Participa da organização da Assembleia de Convergências da Saúde, do Fórum das Resistências que aprovou documento dirigido ao FSM/2022. Numa iniciativa construída no âmbito do Comitê Estadual em Defesa das Vítimas da Covid-19/RS, a Vida e Justiça participou das audiências públicas e da redação do Relatório da Frente Parlamentar para diagnóstico e proposição de atenção integral às vítimas da pandemia naquele estado. No mesmo período auxiliou na organização da Conferência Livre, Democrática e Popular da Saúde, quando sanitaristas e movimentos sociais apresentaram ao então candidato à Presidência, Lula, pauta e agenda de lutas pela reconstrução do SUS, recuperação das políticas de atenção integral e universal à saúde, e respeito à democracia como pressuposto do controle social.
Ainda em 2022, foi importante sua participação na 330ª Reunião Ordinária do CNS, quando colocou em pauta a necessidade de ações para promover pesquisas e ampliar o acesso a cuidados de saúde de pacientes com condições pós-covid. Em decorrência foi aprovada a Recomendação nº013/CNS, de 26.05.22, para o MS construir protocolos da Rede de Cuidados às Vítimas da Covid-19 e seus familiares e ampliar o investimento em Vigilância e Pesquisas. Já na gestão da Ministra Nísia Trindade, a NT 57/2023/DGIP/SE/MS viria atender à Resolução nº013 com atualizações acerca das condições pós-Covid.
Em janeiro/2023, com vários movimentos sociais, o CNS, os Conselhos estaduais e municipais de vários estados, participa da organização da atividade “Desafios no enfrentamento das consequências da pandemia de Covid-19 – Fórum Social Mundial”, com entrega do Manifesto pelas Vítimas da Covid-19 à Ministra da Saúde. Em 15/03, no Memorial do Senado, é lançada a Agenda Covid-19 por Reparação e Responsabilização. Também neste ano, organiza com outras entidades, a Conferência Livre de Vítimas e Familiares de Vítimas, preparatória à 17ª CNS, aprovando todas as suas propostas. Em parceria com Fiocruz inicia o Projeto Memória Virtual das Vítimas da Covid-19, ambiente virtual para reverenciar a memória das mais de 700 mil vítimas.
Por dois anos consecutivos recebeu o prêmio Sergio Arouca de Saúde e Cidadania, da ASFOC-Fiocruz. Atuando com a Coalizão Nacional Orfandade e Direitos, para proteção a crianças e adolescentes que perderam seus pais ou responsáveis devido à pandemia, realizou audiências com os ministros dos Direitos Humanos e da Cidadania e do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. Colabora na organização de seminários em vários estados, mobilizando assembleias legislativas, conselhos estaduais e Ministério Público na busca de reparação, com pensão e proteção integral da saúde física e mental dos órfãos, pelo Estado brasileiro.
Já em fevereiro de 2024, participa da audiência pública promovida pela Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado Federal, sobre o desdobramento das denúncias contra a Prevent Senior, encaminhadas pela CPI da Pandemia. Em março, colabora com o Ministério da Saúde na organização do grande Seminário “Direito à Memória: Lembrar para aprender", para concepção e criação do Memorial da Pandemia de Covid-19. Durante dois dias, cientistas, sanitaristas, comunicadores, gestores e personalidades abordaram as múltiplas dimensões das causas e das consequências da pandemia de Covid-19, que vitimou mais de 700 mil brasileiros e brasileiras, e deve servir como experiência a não ser repetida nas futuras emergências sanitárias.
Dor, sofrimento, luto e desamparo estão presentes na vida das milhares de pessoas que foram expostas ou tiveram agravadas as suas condições de vulnerabilidade social.
Cultivar a memória é criar oportunidades de cuidar, pois não se elabora subjetivamente e não se repara socialmente no silêncio do esquecimento. Compartilhar memórias, em contextos protegidos e acolhedores, é a possibilidade de curar feridas pela construção de sentidos, pela identificação de solidariedades, permitindo, ou mesmo propondo, olhar para a frente, apontar futuros e sonhar.
Preparar o Estado brasileiro para dar respostas adequadas, que protejam vidas, diametralmente opostas àquelas dadas pelo governo federal anterior, reconhecendo que o que houve foi um crime de Estado, é o caminho para a reparação e para que tais horrores não ocorram nunca mais. Acreditamos que a Vida e Justiça tem contribuído para isso, sendo esse o seu propósito.