APRESENTAÇÃO
Este estudo trata sobre os problemas éticos vivenciados por trabalhadores da saúde no enfrentamento à pandemia provocada pelo vírus Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (Sars-Cov-2) causador da doença Coronavirus Disease (Covid-19) nos Centros de Atendimento para Enfrentamento a Covid-19 do Sistema Único de Saúde (SUS), conhecidos também como Centros de Triagem (CT).
Considera-se que os aspectos éticos que envolvem as práticas em saúde, por vezes, não são perceptíveis aos atores envolvidos, podendo interferir na consolidação do SUS. Os conflitos se apresentam nos serviços de saúde de inúmeras formas, podendo configurar-se em um problema ético quando há uma necessidade de eleger entre possíveis cursos de ação com valores contraditórios. Assim, o problema ético é definido como aspectos, questões ou implicações éticas que ocorrem cotidianamente no trabalho da atenção primária e que não se caracterizam necessariamente em um dilema.
Diante do cenário emergencial de saúde pública decorrente da Covid-19, os trabalhadores da saúde enfrentaram diversos problemas, dentre eles, situações conflituosas que confrontaram sua moralidade. Assim, este estudo teve o objetivo de levantar os problemas éticos percebidos pelos trabalhadores da saúde, para que posteriormente em um estudo mais amplo, compreendesse a vivência de sofrimento moral por estes trabalhadores.
DESENVOLVIMENTO
Trata-se de uma pesquisa de campo, de caráter exploratório e abordagem qualitativa. Concluíram o estudo 31 trabalhadores da saúde dos CT do município de Blumenau-SC que tiveram atuação mínima de quatro meses na assistência aos usuários. Foram realizadas entrevistas por meio de videochamadas entre os meses de março e maio de 2021.
Durante a análise dos dados, empregou-se a técnica de análise de conteúdo. Na pré-análise, procedeu-se à organização das entrevistas. Posteriormente, na exploração do material, os códigos foram agrupados de acordo com as proximidades temáticas. Por último, os resultados foram trabalhados, o que envolveu a análise final das categorias iniciais e a elaboração das redes.
O estudo foi avaliado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC com o parecer final nº 4.593.704.
RESULTADOS
Os problemas éticos levantados pelos trabalhadores da saúde foram relacionados em três categorias temáticas relativas à: 1) organização dos processos de trabalho; 2) condições de trabalho; 3) relações entre usuários, trabalhadores e gestores.
Os problemas éticos relatados no que se refere à organização dos processos de trabalho estão relacionados com a dificuldade de acesso aos serviços, aos fluxos de atendimentos e a problemas na organização do trabalho. Os serviços de saúde no SUS incluem uma rede de serviços onde o usuário é referenciado para obter a continuidade do cuidado. Quando não ocorria o atendimento às solicitações de transferência, o profissional de saúde encontrava um problema, já que o CT tinha por finalidade identificar precocemente os casos suspeitos e realizar o atendimento através do método fast-track, sendo as demandas de suporte avançado referenciadas aos serviços de urgência e emergência. Esta dificuldade é evidenciada na fala da participante M7CT2M3: “Muitas vezes a gente fica à mercê do SAMU ou de qualquer outro transporte, e a gente recebe negativa apesar de todos os dados clínicos serem favoráveis para uma internação ou uma avaliação a nível hospitalar.”.
Os problemas éticos relacionados às condições de trabalho estavam relacionados à infraestrutura disponibilizada pela gestão para o exercício das funções laborais, à competência profissional e à capacitação. Ainda que os CT fossem serviços estruturados para prestarem os primeiros atendimentos aos casos de Covid-19, sendo a maioria deles no âmbito dos ambulatórios gerais, os atendimentos que demandam suporte avançado eram frequentes, principalmente em momentos de alta contaminação da população e sobrecarga dos hospitais. No entanto, os CT não possuíam salas devidamente preparadas para atendimentos de emergência, por isso encaminham esses pacientes ao SAMU e aos hospitais. Todavia, estes atendimentos eram demorados e desgastantes, fazendo com que o paciente em condições graves de saúde, permanecesse mais tempo neste local, demandando um suporte avançado que o serviço não possuía. Segundo relato da participante E6CT2F13, os serviços não estavam adequadamente preparados tanto em relação a medicamentos e materiais para procedimentos, quanto a equipamentos para exames e força de trabalho: “[...] falta de material. Tem alguns materiais, vamos supor, se a gente precisar entubar um paciente ali, a gente estava passando por bastante dificuldade, estava sem medicação, sem material para fazer intubação, não tinha um local adequado”. A estrutura básica existente estava acomodada de maneira desfavorável às necessidades do profissional e em quantidades insuficientes caso demandasse muitos atendimentos emergenciais. Diante de tal situação, os profissionais precisavam adaptar e improvisar os procedimentos frente à falta de materiais, e, por vezes, tomar decisões difíceis para não expor o paciente ao maior risco como relata a mesma participante E6CT2F13: “[...] então chega um paciente ali e a gente tem que dar conta de fazer o atendimento ali, o mais breve, mais rápido e tentar o mínimo encaminhar, tentar resolver ali, porém, se a gente não consegue ter um suporte mais avançado?”.
Os problemas éticos nas relações entre os trabalhadores foram citados por grande parte dos participantes. Os motivos são diversos ocasionando estresse, brigas e desrespeito no ambiente de trabalho. A discordância entre os profissionais médicos com relação à prescrição de tratamentos medicamentosos sem evidências científicas os colocava em um conflito ético. Por outro lado, em maior proporção, foram relatados problemas trazidos pelo usuário. As queixas traduziam a impaciência do usuário com o demorado tempo de espera. Neste contexto de atendimento, os usuários não concordavam com os protocolos de testagem. Alguns conflitos foram identificados nas relações entre trabalhadores e gestão. Eles demonstravam dificuldades na comunicação, problemas relatados sem solução e relações de poderes como relata a participante E7CT3F14: “[...] nós questionamos! Eu e minha colega enfermeira questionamos e fomos ameaçadas de processo, inclusive não só processo, ameaçadas de acabar com a nossa carreira”. Também, os profissionais contratados relataram não terem total liberdade para expor suas opiniões aos gestores sobre os problemas a serem resolvidos, pois se sentiam ameaçados de perder seus empregos.
Os problemas éticos presentes nos processos de trabalho em saúde influenciaram diretamente nos modos de trabalho e a qualidade dos serviços prestados aos usuários, além de afetar as relações, os sentimentos e as emoções do sujeito trabalhador. Os resultados deste estudo no âmbito dos CT da Covid-19 corroboram com outro estudo realizado no nível da APS identificando resultados muito semelhantes relativos a problemas éticos. O estudo aponta que as formas como estão estruturadas as organizações e os serviços de saúde são determinantes tanto na geração de problemas éticos como na geração de resolução de problemas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os trabalhadores da saúde identificaram facilmente os problemas éticos, expressando sensibilidade moral para perceber de forma adequada os conflitos de valores. Como componente ético importante deste estudo é necessário destacar o contexto de crise sanitária que afetou toda a população, mas em especial, os trabalhadores da saúde dos CT que confrontam diretamente com o risco de adoecimento e morte.
Ao reconhecer os problemas éticos das situações cotidianas de trabalho o trabalhador da saúde pode ter experimentado sentimentos de desconforto moral, compreendido como a inquietação diante dos fatos e desencadeador de sofrimento moral, tema este que foi abordado em um seguinte estudo.