Esta pesquisa é parte do trabalho de conclusão de residência em enfermagem em Saúde Mental na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) que está em andamento e tem como objetivo escreviver a produção de cuidado em saúde mental junto às mulheres que vivem em situação de rua. A fundamentação deste estudo está embasada na perspectiva paradigmática da Atenção Psicossocial do Campo da Saúde Mental. O movimento da Reforma Psiquiátrica e Sanitária no Brasil deu início às muitas conquistas no campo dos direitos humanos fortalecendo o debate de práticas de cuidado em saúde pautadas pela lógica antimanicomial e da liberdade das pessoas. Durante a construção das reformas, alguns grupos sociais específicos apresentavam vulnerabilidades de saúde muito específicas, como por exemplo, as pessoas que viviam em manicômios, bem como pessoas em situação de rua. O cuidado com pessoas que vivem nas ruas, é fruto de muitos desdobramentos das políticas de saúde, tanto do campo Saúde Mental, quanto da Atenção Básica, o que instituiu o Consultório na Rua- CnaR em 2011 como uma estratégia para a garantia do direito ao acesso das pessoas que vivem na rua, aos serviços de saúde. O CnaR privilegia a produção de cuidado centrada na pessoa, entendendo a saúde enquanto um conceito ampliado, e que por tanto, reforça uma forma de cuidar a partir dos vínculos entre os trabalhadores e usuários, incluindo o território de vida e suas redes de apoio. A relevância desta pesquisa reside na necessidade em problematizar sobre a construção do cuidado em saúde mental junto às mulheres em situação de rua. Como referencial teórico recorri a autores e autoras decoloniais cujas obras contribuíram significativamente para minha compreensão e abordagem na construção de um cuidado em rede com mulheres que vivem a experiência da rua. Quanto ao método, o estudo foi aprovado pelo comitê de ética de parecer: 5.049.80. Foi utilizado a etnografia aliado ao recurso da escrita da escrevivência. A escolha do método justifica-se pelo objeto pertencer ao campo das ciências sociais onde deparamo-nos com a realidade social e do dinamismo da vida singular e coletiva, permeada por significados. Por tanto, a etnografia se debruça na investigação das relações históricas, representações, crenças, opiniões, produtos e interpretações que moldam a forma como as pessoas vivenciam e constroem suas experiências, sentimentos e pensamentos. Aliada à essa perspectiva, foi usado tanto como recurso de escrita, quanto para análise de dados a Escrevivência, método introduzido por Conceição Evaristo, uma mulher negra, brasileira, escritora e pesquisadora, uma das mais importantes estudiosas do movimento negro do Brasil. Suas obras apontam para a necessidade de manter o desconforto que a escrita de mulheres negras provocam dentro do contexto da produção científica hegemônica, predominantemente branca e androcêntrica. Isso representa uma virada epistêmica na qual essa produção se insere, enquanto também mantém uma forte ética comprometida com a militância nos escritos e nos movimentos políticos das mulheres negras. Ser uma mulher negra no Brasil é uma experiência profundamente dolorosa, dada a presença arraigada do racismo estrutural em nossa sociedade, que sistematicamente coloca as mulheres negras em posições desfavorecidas. Nesse sentido, afirmo minha própria identidade como mulher negra e compartilho minha conexão pessoal com a rua e reconecto-me com histórias adormecidas dentro de mim, mas que jamais foram esquecidas. Durante a coleta de dados fui construindo anotações em forma narrada, produzindo as escrevivências, onde rascunhei memórias, experiencias de vida e observações feitas durante meu percurso na Atenção Básica numa equipe de Consultório na Rua, tanto no cenário de consultório dentro do serviço, quanto no território. Essas interações foram documentadas por meio de um diário de campo e posteriormente reelaboradas na análise de dados. No diário, abordei diversos aspectos como o ambiente, relacionamentos familiares e interpessoais ao longo da vida, experiências afetivas e relacionamentos marcados pela violência, entre outros temas discutidos durante os atendimentos. Como resultados, após as análises dos dados foi escolhido escrevivências que experienciei com cinco mulheres negras, viventes das ruas, nas quais encontrava com mais frequência e que possibilitou uma construção de maior vínculo. Para nomeá-las dentro do estudo, usei nomes de Deusas orixás, quais sejam: Iemanjá, Obá, Oxum, Oyá e Nanã. A escolha desses nomes foi cuidadosamente pensados com base em traços comuns entre as histórias dessas mulheres que vivem nas ruas e as das Deusas citadas, buscando destacar essas conexões e ressaltar a dignidade e a força dessas mulheres. Durante a análise das escrevivências, foi possível perceber que todas as mulheres participantes do estudo apresentam características comuns entre si como: todas negras, com histórias de abandono de suas redes afetivas, uso problemático com drogas, história de violências e relacionamentos duradouros com homens que também convivem com elas nas ruas. Por tanto, uma das discussões da pesquisa, é que há fortes evidências de que mulheres ainda que vivendo em situação de rua, reproduzem formas de estar no mundo que se baseiam em ser a parte sobrecarregada das relações afetivas, sendo muitas vezes responsáveis pela manutenção das relações amorosas, ainda que violentas. Há também relatos de solidão e sentimentos de abandono praticado por partes de seus parceiros, o que colocam essas mulheres muitas vezes em situações de perigo de vida. Por outro lado, a pesquisa também encontra nessas mulheres muita força e um discurso de fidelidade aos seus parceiros, evidenciando que a rua apesar de lugar exposto a vulnerabilidades, é cenário de afetos potentes e de cuidado. Considerações finais: o estudo se inclina para uma compreensão de que essas mulheres negras carregam consigo a marca da rua, que por um lado se manifesta através de experiências de violência, relacionamentos complexos, uso problemático de drogas, mas também, por produção de vida, persistência de sonhos, rede afetos e alegria, ainda que em um contexto de vivente da rua. Logo, este trabalho se esforça para apresentar outras formas de cuidado em saúde mental com mulheres que vivem nas ruas e pode por tanto, contribuir para a comunidade acadêmica da área da Saúde, possibilitando também às trabalhadoras do SUS, principalmente as mulheres negras, uma perspectiva do cuidado produzida por pessoas negras para com pessoas também negras. Há sobretudo uma aposta de que este tema pode trazer para enfermeiras de um modo geral, uma reflexão sobre nossas práticas, uma vez que pensa a produção do cuidado a partir de uma lógica singular e da produção de vida, deslocando de formas de estar no cuidado automáticos e tarefeiros muito presentes na profissão. Ademais, a pesquisa também propõe um cuidado para o campo da saúde mental afinado com realidade do Sistema Único de Saúde (SUS), ancorado pela lógica da Atenção psicossocial, feminista, antirracista, e antimanicomial, podendo contribuir para um melhor manejo com as pessoas que vivem nas ruas, principalmente com as mulheres, apostando que essas pessoas devem acessar o direito a saúde e a vida.