Este relato de experiência descreve uma abordagem inovadora que integra os princípios da agroecologia, o uso de plantas medicinais e as práticas religiosas de matriz africana. Baseando-se em um enfoque participativo e interdisciplinar, este método busca promover a sustentabilidade ambiental, a saúde comunitária e a preservação cultural. A experiência relatada demonstra como essa integração pode gerar benefícios tanto para o ambiente quanto para as comunidades locais, fortalecendo laços entre conhecimento científico e saberes tradicionais.
O Cortejo de Ogum é um evento organizado pelo terreiro denominado Centro Espírita Social e Cultural Pai Tomé de Aruanda, situado no Gama, região administrativa de Brasília-DF e liderado por Pai Francisco de Ogum, em colaboração com outras casas religiosas e diversas organizações governamentais e não governamentais.
O evento ocorre em celebração à Ogum, divindade cultuada nas tradições religiosas de matriz africana, como a Umbanda e o Candomblé. Ogum é o orixá do ferro e do aço, das batalhas, das demandas e é o guardião dos caminhos. No sincretismo religioso sua imagem está associada à figura de São Jorge guerreiro, sendo comemorado seu dia pela igreja católica e pelas religiões de matriz africana em 23 de abril.
As celebrações se iniciaram na sexta-feira, dia 19 de abril de 2024, com a concentração para o cortejo na Praça Padre Roque no Núcleo Bandeirante (DF). Após apresentações culturais, o Cortejo, que consiste em uma procissão, seguiu em direção ao terreiro. Com a chegada do Cortejo, foi realizada a abertura do evento com uma gira (ritual de trabalhos espirituais) e uma Celebração Eucarística em homenagem, tendo um padre na condução de tal ritualística. Posteriormente, foi servida uma feijoada à comunidade, comida típica consagrada ao orixá Ogum. No decorrer do dia ocorreram apresentações culturais, rodas de conversa temáticas, palestras e oficinas, as quais abrangiam diversos temas, dentre eles a saúde e a agroecologia.
A interseção entre agroecologia, plantas medicinais e religiões de matriz africana representa um campo emergente de estudo e prática, que reconhece a importância da biodiversidade, dos sistemas de crenças e da saúde humana. Neste relato, descrevemos um método que busca integrar esses elementos de maneira colaborativa e sustentável.
Ressalta-se que desde da manhã do dia 19 até o dia 21, haviam estandes e barracas organizadas em frente ao Centro Espírita com exposição de artigos religiosos tradicionais, comidas e artesanatos. O Programa de Saúde Ambiente e Trabalho (PSAT) em conjunto com o Eco Ilê Projeto da Fiocruz Brasília sobre os terreiros de matriz africana, organizaram um estande durante todos os dias do evento, onde foram ofertados sachês de ervas medicinais para banhos e escaldas pés, elaborados com ervas comumente utilizadas nos terreiros. O uso de ervas e plantas aglutinam saberes ancestrais, tendo como finalidade promover limpeza energética, fortalecer a vitalidade, purificar as energias, trazer proteção e abertura de caminhos.
Um exemplo notável dessa correlação encontra-se na religião Yorubá, praticada em várias regiões da África Ocidental e diáspora, como no Brasil, onde é conhecida como Candomblé. No Candomblé, diversas plantas medicinais desempenham papéis fundamentais em rituais de cura e proteção espiritual. O uso da erva cidreira, por exemplo, não apenas tem propriedades medicinais reconhecidas pela ciência moderna, mas também é associado a práticas espirituais de limpeza e purificação.
Cabe destacar, que durante o evento foram distribuídas também mudas de plantas e ervas cultivadas de forma agroecológica, junto com cartilhas com orientações sobre formas cultivos sustentáveis, intituladas “Cultivando com ciência” e “Manual prático da agroecologia” ambos produzidos pelo PSAT/Fiocruz Brasília. Ressalta-se que o cultivo agroecológico é fundamental para promover benefícios significativos tanto para o meio ambiente quanto para a saúde humana.
A interseção entre agroecologia, plantas medicinais e religiões de matriz africana é um campo fascinante e multifacetado, que revela as profundas conexões entre práticas agrícolas, sistemas de crenças e saúde humana. A agroecologia, como disciplina, reconhece a importância da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais na agricultura sustentável. Por sua vez, as religiões de matriz africana valorizam a natureza e os elementos naturais como fontes de poder espiritual e cura, muitas vezes incorporando o uso de plantas medicinais em seus rituais e práticas.
No contexto da agroecologia, a preservação da biodiversidade é essencial para manter a saúde dos ecossistemas agrícolas e garantir a segurança alimentar a longo prazo (Pretty et al., 2005). Da mesma forma, a preservação das plantas medicinais nas práticas religiosas das comunidades de matriz africana não apenas protege a diversidade biológica, mas também salvaguarda os conhecimentos tradicionais associados a essas plantas, que são uma fonte valiosa de medicina e cultura. Além disso, muitas dessas plantas possuem propriedades medicinais, sendo utilizadas na produção de fitoterápicos e remédios naturais, o que reforça a importância da agroecologia na garantia de um sistema alimentar mais sustentável e benéfico para a saúde da população.
A participação do PSAT no 3° Cortejo de Ogum teve como enfoque promover uma ação de cuidado em saúde, uma vez que tais temáticas dialogam com a linha de estudos e investigações do Programa, que busca compreender os processos de saúde e doença da população brasileira por meio de pesquisas e ações nos territórios. Abaixo segue o percurso metodológico que orientou o desenvolvimento da atividade do PSAT no Cortejo de Ogum:
· Identificação das Comunidades: Inicialmente, identificam-se comunidades onde a agroecologia, o uso de plantas medicinais e as práticas religiosas de matriz africana coexistem de forma significativa;
· Diálogo Participativo: Estabelece-se um diálogo participativo com membros das comunidades, incluindo agricultores, líderes religiosos e especialistas em saúde tradicional buscando compreender as práticas, os desafios enfrentados e as aspirações das comunidades em relação à agricultura, saúde e espiritualidade;
· Mapeamento do Conhecimento: Realiza-se um mapeamento participativo do conhecimento local, identificando plantas medicinais de importância cultural e terapêutica, bem como práticas agrícolas tradicionais e rituais religiosos relacionados à natureza;
· Desenvolvimento de Projetos Piloto: Com base nas informações coletadas, desenvolvem-se projetos piloto que integram práticas agroecológicas, cultivo de plantas medicinais e rituais religiosos. Pode-se implementar sistemas agroflorestais que combinam cultivos tradicionais com plantas medicinais de relevância cultural, e promover rituais de celebração da natureza e agradecimento pelos recursos naturais, como o que foi realizado no Centro Espírita Social e Cultural Pai Tomé de Aruanda; e
· Sistematização, Avaliação e Aprendizado: Ao longo da implementação, realizou-se uma sistematização dos projetos já desenvolvidos, realizando uma avaliação contínua dos resultados, incluindo impactos ambientais, saúde comunitária e fortalecimento cultural. Essa avaliação é conduzida de forma participativa, envolvendo membros das comunidades e pesquisadores acadêmicos.
Entende-se ser de suma importância compreender a saúde em sua totalidade e integralidade e como fator condicionante para melhoria da qualidade de vida, respeitando as especificidades dos territórios e daqueles que os habitam. Nesse sentido, a atuação do PSAT é direcionada para a construção de territórios saudáveis, sustentáveis e solidários (TSSS), cuidados em saúde, valorização e maximização dos conhecimentos tradicionais. Considera-se ser urgente a construção de pontes entre os praticantes das tradições religiosas afro-brasileiras e o setor saúde para a promoção de ações implicadas com as múltiplas realidades e especificidades de cada território e populações.
Em suma, a interseção entre agroecologia, plantas medicinais e religiões de matriz africana revela uma profunda compreensão da relação entre humanos e natureza, onde a biodiversidade não é apenas um recurso a ser explorado, mas uma fonte de sustento físico, espiritual e cultural.