O presente trabalho apresenta e analisa uma experiência de estágio em psicologia ocorrida em um dispositivo da rede de atenção à saúde do município de Belém do Pará voltado para o atendimento de pessoas em situação de rua: a Casa Rua Nazareno Tourinho. Tal experiência proporcionou a possibilidade de reflexão sobre as condições de vulnerabilidade dessa população, bem como as tecnologias de cuidado utilizadas nesse contexto. Considerando a Política Nacional para a População em Situação de Rua, esse recorte populacional é bastante heterogêneo, mas têm em comum a pobreza, ausência de trabalho assalariado, associado à quebra dos vínculos familiares e comunitários e que tem a rua como o espaço de moradia e sustento.
Para o trabalho com essa população, tomamos como base a perspectiva que Emerson Merhy chama de tecnologias relacionais ou leves, ou seja, aquelas que compreendem as relações de produção do cuidado a partir do investimento em metodologias de trabalho que priorizem os sujeitos em suas singularidades e as relações intersubjetivas. A experiência a ser relatada dá destaque especial para as tecnologias construídas a partir do contato com a arte, haja vista que a partir dela foi possível favorecer a construção de vínculo, o exercício do cuidado de si e, sobretudo, o resgate de potência de vida tomada de uma população jogada para as margens de um sistema marcado por abismos de desigualdade e pela necropolítica.
Nesse sentido, pensando na arte como uma tecnologia relacional, este trabalho foi elaborado na tentativa de se pensar outras potencialidades de atuação de psicólogos em formação e da própria psicologia para além do modelo exclusivamente biomédico, clínico e hegemônico.
As experiências no dispositivo Casa-Rua Nazareno Tourinho decorreram da disciplina de Estágio Básico em Saúde, no curso de psicologia da Universidade Federal do Pará, com a duração de dois meses. As atividades eram pensadas e conduzidas pelo grupo de estudantes, contando com a orientação e supervisão da professora responsável pelo estágio. As oficinas realizadas foram direcionadas ao usuários da Casa Rua, composa por população em situação de rua, majoritariamente homens negros.
A primeira dinâmica escolhida baseou-se em exercícios teatrais a partir do método do Teatro do Oprimido, fundamentado por Augusto Boal, o qual propõe uma abordagem artística que promove reflexão e transformação por meio da encenação, retirando a posição de passividade do espectador por meio do convite à modificação e elaboração das narrativas. Foram utilizados jogos de mímica, história contada e jogo da escultura, com o objetivo de permitir a expressão de emoções, a representação simbólica do cotidiano e a colaboração criativa entre os usuários do serviço.
Além disso, a fim de estimular a consciência corporal e o resgate de idiomas culturais, na segunda dinâmica foi articulada uma oficina introdutória de capoeira, onde seria possibilitada aos participantes uma subjetivação corporal que não fosse a de vulnerabilização e violência, mas sim de musicalidades, dança e luta. Nesse sentido, compreende-se que essas possibilidades de socialização se configuram como resistências estratégicas em contraponto ao tratamento moralizante e estigmatizado normalmente atribuído a usuários compulsivos de drogas, trazendo à tona a política de Redução de Danos através de expressões artísticas dentro do serviço de acolhimento para populações em situação de rua.
No que se refere à atividade teatral, primeiramente foi realizada a dinâmica do jogo de escultura, na qual os participantes precisavam criar cenas cotidianas com os “manequins” disponíveis, nesse caso, eram os próprios estagiários. Assim, houve a simulação de cenas de uso, além de outras cenas presentes na rotina de pessoas em situação de rua.
A atividade continuou com a realização da dinâmica da mímica, a qual teve um maior engajamento dos usuários, seja por ser uma dinâmica conhecida, seja pelo fato dos participantes já estarem menos acanhados. Na história contada por muitos atores, foi possível vê-los apresentarem fenômenos como o modo que fazem uso das substâncias ilícitas que consomem, a violência policial que sofrem, seus gostos musicais e até mesmo suas desilusões amorosas.
No que tange à realização da roda de capoeira, um mestre capoeirista e sua aluna foram convidados a conduzir a aula, bem como a trazer os instrumentos que fazem a melodia de uma roda. No entanto, como a psicologia na rua sempre está sujeita a imprevistos, o que fora idealizado não ocorreu. O mestre de capoeira, que estava com os instrumentos, não conseguiu chegar no local por imprevistos pessoais. Apesar disso, um dos usuários presentes afirmou que fora quase mestre de capoeira em tempos idos e, a partir disso, ele tomou o lugar de condutor da roda. Enquanto isso, a equipe se mobilizou para conseguir os instrumentos e um berimbau apareceu, propiciando momentos de aprendizado e diversão a partir da capoeira.
Com música e movimentos corporais, a roda de capoeira pôde acontecer em meio a imprevistos e inventividade, chamando para dança os outros usuários presentes, alguns dos quais também tinham seu passado com a capoeira e puderam, a partir do resgate de um idioma cultural comum, colocar seus corpos em lugares outros que não o da sujeição, mas um corpo ativo que dança, luta e resiste.
Em ambas atividades, percebeu-se a arte como uma maneira única de expressão, capaz de resgatar lembranças e posições subjetivas de outros momentos da vida. Assim, adotou-se a arte não como um meio para um objetivo, mas como fim em si mesma, uma forma de criar outras possibilidades de sentir e de estar no mundo.
Dado o exposto, este trabalho leva a reflexão sobre a intersecção entre a abordagem da clínica peripatética e a política de redução de danos em contextos de atendimento à população em situação de rua. Ao adotar uma prática clínica que transcende os limites do consultório tradicional e se desenvolve em espaços diversos e dinâmicos, como as ruas e os centros de acolhimento, os profissionais da psicologia podem efetivamente alcançar aqueles que estão à margem dos serviços de saúde convencionais.
A experiência citada também destaca a relevância das tecnologias relacionais ou leves, ressaltando que o cuidado não pode ser reduzido apenas ao aspecto biomédico, mas deve considerar igualmente os aspectos emocionais, culturais e sociais dos sujeitos. Através da participação em atividades artísticas, os usuários do serviço encontram espaços seguros para se expressarem e estabelecerem novos laços comunitários.
Desse modo, a arte se mostrou um efetivo artifício de promoção de cuidado no serviço em questão, opondo uma lógica tecnicista e hierárquica hegemônica na produção de assistência à saúde. Além disso, o fazer artístico proporcionou uma forma única de comunicação e expressão subjetiva, permitindo que histórias outroras silenciadas fossem trazidas à luz e compartilhadas de maneira autêntica e empoderadora.
Mesmo diante dos imprevistos, como a ausência do mestre de capoeira, a criatividade e o engajamento dos próprios usuários permitiram que as atividades fluíssem de forma significativa. Ressaltando um dos pilares da Política de Redução de Danos: a autonomia desses sujeitos frente ao seu processo de cuidado. Portanto, esta experiência não apenas amplia o repertório de intervenções da psicologia, mas também reforça o papel fundamental da arte e da cultura na promoção da saúde mental.