Apresentação: O presente relato de experiência trata sobre a criação e desenvolvimento de ações coletivas de promoção e proteção da saúde mental e do bem-viver, a partir de um serviço de atenção primária em saúde em um território periférico da cidade de Belém do Pará. Sendo assim, abordaremos sobre como se produziu o acolhimento da grande procura por atendimentos em saúde mental após o período mais grave da sindemia da Covid-19. Em princípio uma busca por atendimentos individuais, que conjugavam o enraizamento da biomedicalização da vida, em sintonia ao individualismo neoliberal, com as respostas clínicas e sociais eminentemente pautadas pelo discurso biomédico hegemônico. Partimos do princípio de que uma demanda nunca está pronta, mas sim construída com as pessoas e seus territórios existenciais. Responder unicamente com o atendimento individual poderia aprofundar o ensimesmamento e a solidão, redobrando a colonização das experiências de padecimento já contidas na redução biomédica e neoliberal dos mesmos. Sendo assim, construímos no encontro com essas pessoas e seus territórios existenciais respostas de cuidado coletivas, apoiando-nos na esquizoanálise e nos saberes amazônidas. Neste trabalho abordaremos especialmente o trabalho desenvolvido com dois grupos temáticos: o grupo das mulheres e o grupo dos jovens. Um trabalho que logo rompe as quatro paredes da unidade de saúde e toma o território e os saberes amazônidas como mais um importante dispositivo de cuidado. Saberes que nessas latitudes têm nos fluxos das águas uma importante e necessária conexão. Agenciar essa ancestralidade no trabalho terapêutico construiu coletiva e democraticamente nos grupos a possibilidade de levar nossas conversas paras as águas. Grupos terapêuticos de jovens e de mulheres tomaram como espaço de promoção e proteção da saúde mental e do bem viver o olho d’água, chamado no território de cacimba, nas proximidades da Unidade de Saúde do Satélite, Belém (PA).
Desenvolvimento: Muito se discute que inúmeras práticas em saúde mental coletiva ainda estão fechadas aos moldes biomédicos hegemônicos, carregadas com sua bagagem diagnóstica e prescritiva que dificulta a associação do cuidado com outros saberes tradicionais e indígenas. Esse julgamento dos outros processos de saúde à luz da nossa cultura ocidental como adequados ou não, acaba reforçando um olhar universal sobre as questões referentes à saúde e hierarquizando saberes, repetindo processos de assujeitamento na construção de cuidado. É sabido o quanto o modelo explicativo do discurso biomédico hegemônico reduz outros modelos à invalidade, à inverdade, à simples crendice suposta e pejorativamente julgada primitiva. Não se trata aqui de produzir a mesmo redução violenta dos saberes das especialidades científicas ocidentais, ao contrário, trata-se de equacionar o cuidado compondo saberes de modelos explicativos distintos. Deixar de lado as violentas hierarquizações e reduções iconoclastas para escolher uma abertura às experiências e saberes singulares e coletivos desse território. Evidencia-se que a constituição dos padecimentos e produção de saúde mental coletiva acontecem nesse tecido sociocultural e ambiental multifacetado, plural, rico em sua cosmologia ancestral. Nesse sentido, recorremos a análise crítica sobre nossa ontologia urbana, de nascermos e construirmos nossas narrativas nessa plataforma do capitalismo, na qual aprendemos essa visão dicotômica “homem e natureza”, e que impregna nossa perspectiva de vida atrelada unicamente a esse pensamento como se fosse uma verdade fundamental. Desse modo, faz-se urgente a escuta dos nossos rios para possibilitar uma confecção de cuidado coletivo, que se faz nessa relação na compreensão de si enquanto natureza, pois os próprios rios sugerem nosso futuro ancestral. Nessa perspectiva do bem-viver, na qual os rios também amplificam a visão de mundo e propiciam sentido a nossa existência, resgatamos nos grupos terapêuticos essa interação com as nossas águas amazônicas, no caso aqui, a chamada cacimba, um “olho d’água” represado que mantiveram uma característica de água corrente, localizado nas proximidades da Unidade de Saúde do Satélite dentro de uma propriedade privada, mas de livre uso dos moradores do bairro, que podem usufruir do espaço em horários estabelecidos. Mais que um simples olho d’água, nossos grupos se fizeram valer do olhar da água que atravessa nossas histórias como amazônidas.
Resultados: nas águas da cacimba diversos afetos foram discorridos como produção de saúde integral viva e em ato, em conexão com a natureza, em que os participantes também se perceberam enquanto natureza. Nessa cartografia líquida emergiram inúmeras narrativas, elaborações, trocas, criação de cuidado plural e saberes transversalizados, respeitando as singularidades de cada participantes, prezando por sua voz ativa e sua autonomia, por meio de uma escuta ética reflorestada e flutuante no próprio ser-água, que nos acolhia com toda sua generosidade e abundância, ensinando-nos a importância de jorrar em coletivo nossos afetos e de criarmos uma circularidade nessa composição na rede de cuidado mútuo. Uma rede que a atmosfera do grupo terapêutico respirava também cercado por muitos seres-árvores ao redor do olho d’água. Assim, o devir-água abraçando o devir-grupo produziu uma pedagogia da coexistência, uma relação mais interessante, que nosso corpo-território sensível foi convidado à experimentação, a desfocar de um saber-cuidado apenas centrado na lógica antropocêntrica, na qual os outros seres são invisibilizados. Com isso, nessa confluência, fomenta-se que esse dispositivo chamado grupo terapêutico possa agenciar outros modos de cuidado no âmbito ético-estético–político, de evocar nesse contexto múltiplos mundos de cartografias afetivas, produzir encontros e dialogar numa experiência radical da vida. Nesse ambiente aquático, o grupo-devir terapêutico deslizou em suas falas ressignificações sobre o amor, relacionamentos, culpa, escolhas e tantos outros afetos, em que desejos submersos em camadas sufocantes por padrões empobrecidos apenas na perspectiva do capital, emergiram e se potencializaram em acontecimento nesses diálogos, nos quais um grupo-sujeito passou a protagonizar uma produção sensível de cuidado em saúde mental coletiva.
Considerações finais: nesses grupos terapêuticos observa-se fortemente a potência dos encontros fora das paredes da Unidade. Os coletivos agenciados, principalmente o grupo terapêutico de jovens, afetuosamente, já nomearam a cacimba como seu ponto de encontro. Em contato com esse ser-água, em sua natureza flexível e fluida, somos marcados profundamente em nossa ancestralidade amazônida. Desse modo, o olho d’água provocou metamorfoses e narrativas poéticas em nossos corpos sensíveis-afetivos, compondo nossos sentidos para além da arquitetura reta e concreta do urbano.