Apresentação
O presente trabalho trata-se de um relato de experiência dedicado a discutir ações realizadas no Estágio Supervisionado do curso de psicologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) em composição com o projeto de extensão “Devires da Clínica: Transversalidade, Clínica Ampliada e o Apoio às práticas de cuidado nas Redes de Atenção à Saúde”. Tais ações foram realizadas em uma entidade pública voltada para o fomento e execução de políticas públicas voltadas para a população LGBTQIAPN+, negra, e para povos e comunidades tradicionais em João Pessoa. Levando em consideração que o próprio serviço foi criado pela atuação dos movimentos sociais que defendiam os direitos e à criação de políticas públicas voltadas à população LGBT, a instituição executa ações diversas, como o estabelecimento de parcerias com serviços de assistência social, psicologia, direito, etc; e articulação desses trabalhos com a rede intersetorial junto aos equipamentos públicos locais, sobretudo no âmbito da saúde e da assistência social, possibilitando uma entrada para a psicologia clínica em sua perspectiva ampliada.
Metodologia
Por uma lado, o trabalho considera as questões interseccionais relacionadas aos modos de vida e as vulnerabilidades nos contextos de determinadas existências, inclusive na esfera das macropolíticas. Igualmente, aposta-se na intersetorialidade entre as políticas públicas, no paradigma ético-estético-político e na ampliação da clínica como clinamen (desvio) para acompanhar as pessoas que acessam o serviço e criar dispositivos que façam do cuidado em saúde algo possível. Dentre as macropolíticas instituídas, é necessário pautar a violência LGBTfóbica presente no contexto brasileiro, com grande impacto na saúde mental desse público, bem como os preconceitos advindos do racismo institucionalizado, produtor do sofrimento vivenciado pela população negra no país, a níveis individual e coletivo. Através da análise institucional e pensando uma ética de cuidado humanizado que traz a ideia de saúde como capacidade de produção de vida, propõe-se um espaço capaz de acolher as produções da subjetividade, promovendo a diversificação de ofertas e a cartografia desses territórios existenciais. A inserção da psicóloga convoca a uma clínica transdisciplinar, crítica, direcionada à coletivização da liberdade. Intentamos, aqui, relatar e discutir as experiências e os dispositivos criados, assim como seus efeitos na promoção de um cuidado amplo e humanizado em saúde.
Desenvolvimento e Resultados
Inicialmente foi realizada uma análise documental da entidade, especificamente o instrumento de entrevista e a lista de espera das pessoas interessadas no atendimento psicológico. Iniciar pelo documento da entrevista foi essencial para entender como essas pessoas chegavam no serviço e quais informações eram necessárias para compor a ficha deste usuárie. Considerando o público, questões relativas à orientação sexual e identidade de gênero são imprescindíveis para as ações realizadas no serviço. Pensando nisso, algumas alterações no instrumento foram propostas, com o intuito de qualificar o acolhimento, contemplando e dando visibilidade para distintos modos de subjetivação. Nesse sentido, é imprescindível que o instrumental favoreça a cartografia do território existencial da pessoa, desde os serviços e redes de apoio em saúde, como as relações que estabelece, possíveis grupos ou coletivos do qual faz parte e os significados desses espaços para si. Essas informações devem, ainda, ser obtidas de forma acolhedora e atenta. A oferta de atendimento clínico iniciou pela própria demanda do serviço, a partir da lista de espera, com dois casos iniciais. O primeiro tratava-se de um homem negro com questões ligadas a vínculos familiares e amorosos. Órfão desde muito cedo e alvo de rejeição da família ampliada por conta de seus marcadores sociais, de classe, e suas relações com pessoas LGBTQIAPN+, ele apresenta questões ligadas à confiança nas pessoas. Tais elementos atravessam seus vínculos e agravam seu sofrimento. Contudo, escrever e fazer rap se apresenta como uma linha de fuga para ele, marcando fortemente em suas falas que isso seria sua vida, inclusive sentindo-se à vontade para recitar suas produções ao longo dos encontros no espaço criado pelo serviço de psicologia. Em um outro momento marcante, a psicóloga é convocada a ocupar posição que aproxima-se de uma acompanhante terapêutica, acompanhando-o até uma praça que oportunizou a fala do usuário, elaborando significações daquele território existencial. Esta intervenção contrapôs as posturas rígidas e autodepreciativas do usuário, que se desfizeram aos poucos quando se estabeleceu um encontro de cuidado e confiança em que ele se sente visto e acolhido. Outro caso atendido foi de uma mulher trans em situação de extrema fragilidade, envolvendo histórico de exclusão, hostilidade e violência, inclusive transfóbica, em relações conjugais e familiares, que levam a mudanças constantes de endereço, vulnerabilidade social e outras problemáticas que terminam por agravar seu sofrimento. Surge a necessidade de trabalho articulado em rede, inicialmente com a assistência social de referência para o caso, que colabora com o fornecimento de acesso à internet e um computador, de modo que ela pudesse ser atendida remotamente. Assim, todo o contato inicial foi mediado por ferramentas de comunicação à distância. Ao longo dos contatos e encontros mediados por tecnologia, a usuária inicia a elaboração de seu sofrimento e sua solidão, decorrentes das violências às quais esteve sujeita. Emerge também questões ligadas à auto-estima por conta de uma condição médica e, a respeito disso, fundamentando-se no vínculo estabelecido, acordou-se que a psicóloga responsável pelo o caso a acompanharia em uma visita médica, mais uma vez em uma posição que aproxima-se do acompanhamento terapêutico e que possibilitou o estabelecimento de um vínculo não mediado pelas tecnologias. Pelos relatos da usuária, tal ação proporcionou conforto e sensação de apoio. Assim, apesar de o atendimento individual ser um dispositivo amplamente utilizado, um olhar criativo voltado ao fazer clínico de forma ampliada, abre espaço para a criação de dispositivos outros, e isso se manifesta nos encontros com es usuáries.
A demanda pelo atendimento em psicologia nesse serviço é bastante superior à capacidade de psicólogas de fazerem atendimento clínico individual, especialmente quando considera-se que o público-alvo da entidade em questão frequentemente apresenta casos de vulnerabilidade e violência. Assim, fez-se necessária a análise do documento da lista de espera de usuários que expressam interesse. Dessa forma, foi pensado um dispositivo grupal, apostando na força do coletivo como um espaço de experimentação, para isso entramos em contato com as pessoas que aguardavam o atendimento. O contato foi essencial para o estabelecimento de um vínculo, visto que o próprio serviço se comunicava através de mensagens sobre os atendimentos e demais serviços, essa iniciativa promoveu o engajamento das pessoas em suas expectativas de cuidado. O momento proporcionou um espaço de acolhimento seguro e também trocas de experiências, ocorrendo um processo transgeracional somada às vivências enquanto identidade LGBTQIAPN+, pois es usuáries tinham uma diferença significativa de idade.
Considerações finais
Diante das demandas da população LGBT e preta em João Pessoa, percebe-se o quanto a saúde mental é atravessada por uma série de violências e opressões, dentre elas transfobia, homofobia, machismo, racismo e suas interseccionalidades. Nessa perspectiva, um investimento na clínica ampliada se fez necessário, buscando atualizações de tudo aquilo que se cristaliza e permanece rígido no serviço, mas que não acompanha os fluxos e a multiciplicidade das subjetividades. Uma clínica ampliada e bem articulada com a rede de saúde e de assistência social propôs um cuidado efetivo para com essa população. Por fim, a ética do cuidado, é essencial para que a atuação em saúde mental seja eficaz, assim, pensar o devir é abrir possibilidades para a liberdade.