Apresentação:
O presente trabalho versa sobre as Políticas e ações de saúde específicas para populações tradicionais residentes nas águas, tais como ribeirinhos e extrativistas marinhos, com recorte de gênero e ocupação, para mulheres pescadoras artesanais. O porto de partida da pesquisa são os maretórios de Bragança, no estado do Pará, junto às mulheres pescadoras artesanais em suas atividades nas Reservas Extrativistas Marinhas (RESEX), considerando suas lutas cotidianas por sobrevivência, soberania e direitos calcados na sustentabilidade e no uso dos recursos naturais. Suas identidades são forjadas nos saberes tradicionais, organizando suas vidas conforme os ciclos de cheias e vazantes, na sazonalidade, e habitando um entorno em constante transformação.
No Sistema Único de Saúde (SUS) estão disponíveis e vigentes diretrizes específicas para o cuidado em saúde de populações que habitam no contexto das águas, com ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, visando atender suas demandas e especificidades através da integralidade do cuidado. Uma das populações que reside e resiste nas águas – nos maretórios - são aqueles que estão na RESEX, sendo esta, um dos modelos de Unidades de Conservação que têm como atribuição preservar os modos de vida de seus habitantes e da própria natureza. A Costa Amazônica do Pará possui 14 unidades de RESEX, formando um extenso cinturão verde de conservação e o maior manguezal em extensão do mundo. Assim, este estudo tem por objetivo identificar as Políticas e Estratégias disponíveis no âmbito da saúde pública para os povos das águas e as especificidades existentes para o cuidado das mulheres que habitam os maretórios.
Desenvolvimento do trabalho:
Nos maretórios – conceito oriundo das lideranças extrativistas para definir não apenas os aspectos geográficos, mas os saberes, simbolismos e imaginários produzidos historicamente no modo de vida que opera conforme o fluxo das águas, das marés, o que interfere diretamente na produção laboral e no ritmo da vida – estão as comunidades extrativistas marinhas. Essa população, no Pará, inclui mais de 28 mil famílias, distribuídas para além de 300 comunidades, cuja principal fonte de subsistência é a pesca artesanal. Ressalta-se que existem cerca 95 mil pescadoras artesanais, sendo o segundo estado com maior número de mulheres desenvolvendo essa prática.
O papel social das mulheres dos maretórios é bem estabelecido, com atividades ocupacionais destinadas à pesca nas águas rasas do estuário, à cata de caranguejos e mariscos no manguezal e seu processo de beneficiamento, que são consideradas funções mais leves e, portanto, com menor remuneração, conjuntamente com atribuições domésticas e cuidado familiar. Ao homem, é atribuída a pesca em águas mais distantes e no mar, prioritariamente. Essas mulheres possuem uma atuação relevante na cadeia de produção pesqueira e desempenham atividades de liderança, de referência na conservação e preservação dos recursos naturais, participam de coletivos organizados para empoderamento e autonomia das mulheres, e desenvolvem atividades que abarcam seus conhecimentos ancestrais, atuando como benzedeiras, parteiras e artesãs.
Estudos que enfatizem a saúde das mulheres pescadoras artesanais analisam, principalmente, os processos de adoecimento e disfunções musculoesqueléticas, doenças ocupacionais, direitos previdenciários e segurança alimentar, e um silenciamento com a ausência de produções científicas que valorem seus saberes ancestrais, formas de produção de saúde e cuidado, e singularidades para além de corpos produtivistas nos maretórios.
Dentre as estratégias para cuidado em saúde disponíveis no SUS, identificamos a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta, estabelecida em 2011, que teve o acréscimo dos Povos das Águas no ano de 2014, por meio da Portaria nº 2.311, nomeada como Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, da Floresta e das Águas (PNSIPCFA). Essa normativa considera populações tradicionais aquelas que têm “seus modos de vida, produção e reprodução social relacionados predominantemente com o campo, a floresta, os ambientes aquáticos, a agropecuária e o extrativismo”. A PNSIPCFA engloba comunidades como assentados, acampados, quilombolas, e aqueles que habitam ou usam reservas extrativistas; e tem, entre seus objetivos, a contribuição para redução das vulnerabilidades com ações integrais para saúde da mulher, o reconhecimento e valorização dos saberes e práticas tradicionais de saúde com respeito às suas especificidades, o planejamento participativo capaz de identificar as demandas de saúde.
Além da PNSIPCFA, no escopo da Atenção Primária à Saúde, foram identificados dois modelos organizacionais que prestam atendimentos às comunidades e áreas de acesso por rios: as Equipes de Saúde da Família Ribeirinhas (eSFR), que se localizam em Unidade Básica de Saúde em território adscrito, composta por equipe mínima (médico, enfermeiro, técnico de enfermagem e Agentes Comunitários de Saúde, podendo acrescentar profissionais de saúde bucal); e as Equipes de Saúde da Família Fluviais (ESFF), que operam por meio de Unidades Fluviais, indo ao encontro das comunidades que estão localizadas em ambientes aquáticos. Ambas as equipes devem atender, no mínimo, 14 dias ao mês, e dispor de 2 dias para atividades de educação permanente, registro de produção e planejamento das ações a serem desenvolvidas.
Ademais, em 2018, o Ministério da Saúde em parceria com instituições de ensino superior e movimentos sociais da pesca, produziram duas cartilhas direcionadas à “Saúde das Pescadoras Artesanais”, sendo uma para atividades de mariscagem e pesca em mar aberto, e outra para pesca em rios, lagos e lagoas. Conjuntamente, apresentam definições básicas sobre saúde, SUS, doenças ocupacionais, riscos de acidentes de trabalho, direitos previdenciários, vigilância em saúde, e a proposição de um plano de ação para melhoria da saúde das pescadoras artesanais.
Resultados:
Por meio do levantamento de normativas específicas aos povos das águas, foram identificados três documentos que mencionam as mulheres: A PNSIPCFA, e as duas Cartilhas “A Saúde das Pescadoras Artesanais”. Foi possível observar que a PNSIPCFA menciona, ainda que brevemente, a necessidade de ações de cuidado integral para a saúde da mulher, incluindo aspectos da saúde sexual e reprodutiva, violência sexual e doméstica, e o incentivo a pesquisa e produção de conhecimento sobre riscos, qualidade de vida e saúde, respeitando as especificidades de gênero. As duas Cartilhas elaboradas em parceria com outras instituições direcionadas exclusivamente para pescadoras artesanais também são ferramentas institucionais para promoção de informações e garantia de direitos fundamentais desse grupo. Todavia, ainda existe um mar que separa as produções institucionais e acadêmicas e o reconhecimento e valorização dos saberes e práticas tradicionais de saúde das populações tradicionais e o respeito as singularidades.
Considerações finais:
Ainda que institucionalmente existam apontamentos que direcionem para a saúde das mulheres que resistem no maretórios – as pescadoras artesanais e extrativistas – essas orientações peregrinam na lógica do corpo destinado à sexualidade e reprodução, acometido por violências sexuais e domésticas, e do corpo como ferramenta de trabalho. No entanto, não é possível pensar em produção de saúde e cuidado integral dessas mulheres sem mergulhar nas dimensões dos saberes ancestrais, da influência das águas nas suas atividades cotidianas e em seus corpos, incluindo os valores do simbólico e do imaginário que permeiam sua cultura, os quais perpassam a lógica do próprio corpo físico.
Assim, faz-se necessário, não apenas o saber e domínio das políticas de saúde, mas estar com essas mulheres, escutar suas histórias, acompanhar suas trajetórias – perspectiva desta pesquisa-intervenção – utilizando como bússola suas narrativas, suas percepções sobre seus corpos em seus maretórios, considerando suas vivências e ancestralidade.