Apresentação
A inserção das mulheres na medicina tem sido um avanço crucial, promovendo a igualdade de gênero e ampliando a diversidade ao atendimento de pacientes, enriquecendo o campo e melhorando a qualidade dos serviços prestados. No entanto, o mercado de trabalho ainda requer uma mão de obra feminina diversificada em muitos setores, e os desafios persistem, especialmente na conciliação entre a carreira profissional e a vida familiar. Aqui se introduz o conceito de tripla jornada, ou seja, a assunção de papéis em três esferas distintas: o trabalho formal, as tarefas domésticas e o cuidado familiar, e as atividades sociais ou comunitárias.
O aumento do número de mulheres médicas é um indicativo da crescente inclusão de gênero na medicina. No entanto, essa inclusão ainda enfrenta desafios, particularmente em posições de liderança em grandes entidades médicas, onde a presença feminina é notavelmente escassa. Essa disparidade pode ser atribuída a uma variedade de fatores, incluindo preconceitos institucionais, vieses inconscientes e expectativas culturais sobre o papel das mulheres.
As médicas, assim como muitas mulheres em outras profissões, frequentemente enfrentam a culpa e a pressão de equilibrar suas responsabilidades profissionais e familiares. A sociedade espera que elas desempenhem um papel fundamental no cuidado aos filhos, garantindo uma atenção eficaz e abrangente às necessidades deles. No entanto, essa expectativa entra em conflito com as demandas do ambiente de trabalho, onde a ausência da médica, seja devido à maternidade ou a outros compromissos familiares, é muitas vezes recebida com rejeição. Essa rejeição não apenas gera medo de consequências negativas no trabalho, como a perda de oportunidades de progressão na carreira e estagnação salarial, mas também alimenta a ansiedade de interromper o continuum do processo capitalista, que exige ganhos crescentes de posição e produção.
O amor é um componente fundamental no processo de cuidado, ressaltando a necessidade de compreender o ato de cuidar como uma expressão de humanidade e conexão, independentemente do gênero. No entanto, a sociedade tende a delegar essa responsabilidade quase exclusivamente às mulheres, criando uma expectativa sobre seu papel de cuidadoras primárias, tanto na família quanto na comunidade.
Uma possibilidade de repensar a estruturação social pode ser a introdução do conhecimento feminista na educação médica. O arcabouço abrangente do feminismo é pungente e proporciona ganhos significativos, oferecendo uma compreensão crítica do papel das mulheres na medicina e na sociedade em geral, além de um movimento acolhedor e cuidadoso.
Objetivo
Refletir sobre a experiência do papel da mãe-médica assistente-professora e o processo de culpa e ausência de comiseração da sociedade, ampliando o debate sobre o conhecimento feminista para minorar esses processos.
Descrição da experiência
Os relatos de experiências desempenham um papel fundamental na produção acadêmica de caráter qualitativo na medicina, fornecendo uma perspectiva única e aprofundada sobre a prática médica. Permitem explorar as nuances e complexidades de uma maneira que os métodos quantitativos não captam, pois pensam o impacto humano das decisões, a dinâmica das interações e os desafios cotidianos enfrentados pelos profissionais de saúde. Além disso, essas narrativas ajudam a contextualizar dados estatísticos, fornecendo um quadro mais completo e realista do campo. Ao incorporar experiências pessoais na produção acadêmica qualitativa, a medicina pode evoluir para uma prática mais holística e compreensiva, que leva em consideração não apenas os aspectos clínicos, mas também as dimensões emocionais e sociais da saúde.
A experiência a ser detalhada e a exploração de subjetividades de uma mãe médica assistente e docente que equilibra suas responsabilidades profissionais e familiares pode ser desafiadora e emocionalmente complexa. Como médica, ela possui um amplo conhecimento biomédico, o que lhe permite compreender o estado de saúde de seu filho de maneira detalhada e precisa. No entanto, essa mesma compreensão pode aumentar o estresse, pois ela está ciente das possíveis complicações e prognósticos, gerando medo da piora do quadro de saúde de seu filho e a sensação de responsabilidade intensificada.
Além disso, a necessidade de se ausentar de suas funções profissionais para cuidar de seu filho é muitas vezes recebida com críticas pela sociedade, reforçando a sensação de culpa e alimentando o ciclo de medo e ansiedade. Esse ciclo pode levar a um esgotamento emocional e mental, causando lapsos de memória, brancos e apagões devido aos altos níveis de adrenalina.
A mãe médica vive uma constante dualidade. A pressão externa a empurra a desempenhar múltiplos papéis profissionais, atendendo pacientes, orientando alunos e cumprindo suas responsabilidades no ambiente hospitalar e acadêmico. No entanto, a pressão interna, alimentada pelo desejo de estar ao lado de seu filho, a corrói, gerando uma sensação esmagadora de culpa e inadequação. Ao ceder à pressão externa e não se ausentar do trabalho, a mãe médica carrega a cruz de não estar presente para seu filho, sentindo-se a pior pessoa do universo por priorizar terceiros em vez de sua própria família. Essa tensão constante entre a dedicação à carreira e o desejo de ser uma mãe presente reflete o dilema de muitas mães na medicina, que se veem divididas entre sua vocação profissional e seu papel familiar.
O movimento feminista tem desempenhado papel de acolher mulheres, proporcionando uma perspectiva crítica que desafia as noções tradicionais de gênero e promove uma abordagem inclusiva em diversas áreas, incluindo a educação médica.
Resultados
O descobrimento do feminismo e o arcabouço teórico desse movimento proporcionaram uma nova perspectiva e um espaço para seu grito de desespero e compreensão crítica de seu papel. Essa compreensão revelou como o sistema capitalista é responsável pela confusão entre as múltiplas facetas de sua identidade: mãe, mulher, médica e professora, todas aprisionadas em um sistema opressor e extrativista. Essa estrutura não permite o "ser" e o "saber" enquanto elementos essenciais, mas prioriza o "ter" e o "produzir", levando a uma sobrecarga exaustiva de responsabilidades. O feminismo, por meio de sua teoria e ativismo, ofereceu a essa médica uma lente para entender e desafiar a estrutura opressiva em que está inserida, destacando a necessidade de um equilíbrio que valorize a diversidade de suas contribuições e promova um ambiente onde ela possa prosperar de forma integral.
Uma professora médica que incorpora a teoria feminista em sua prática pode servir como um modelo inspirador, oferecendo uma abordagem que reconhece e valoriza a singularidade de seus alunos. Ao aplicar essa teoria, ela promove um ambiente educacional inclusivo e reflexivo, incentivando seus alunos a desafiar as estruturas formativas que muitas vezes restringem sua individualidade e criatividade.
Conclusão
A sobrecarga da tripla jornada de trabalho ressalta a necessidade de mudanças culturais e institucionais para garantir que as mulheres possam prosperar plenamente em suas carreiras, enquanto também têm o direito de optar por um equilíbrio entre suas vidas pessoais e profissionais. Essa abordagem crítica reflete uma falta de compreensão sobre a necessidade de equidade e apoio institucional para as médicas, destacando a necessidade de uma mudança cultural e estrutural para criar um ambiente médico verdadeiramente inclusivo e igualitário.
O conhecimento feminista amplia a consciência sobre as pressões sociais e institucionais que moldam a experiência das profissionais. Essa conscientização não apenas beneficia as médicas, proporcionando-lhes um ambiente mais inclusivo e compreensivo, mas também favorece a sociedade como um todo, ao promover uma visão mais igualitária e diversa da medicina.