A Constituição Federal Brasileira de 1988, ao instituir o Sistema Único de Saúde (SUS), afirma que este deve ter como um de seus três pilares fundamentais a participação da comunidade nos processos de fiscalização e decisão da política de saúde, a qual deve ser efetivada através de dispositivos que garantam a participação social ativa na gestão do sistema, tais como os conselhos de saúde e as conferências de saúde.
Nesse sentido, as Conferências de Saúde (CS), instituídas pela lei 8.142/90, reafirmam a imprescindibilidade do controle social no SUS, não só ao propor que esta tenha o objetivo de avaliar a situação de saúde e debater as diretrizes para a formulação da política de saúde municipal, estadual e federal, mas também ao afirmar a paridade entre usuários e outros segmentos na sua realização, tais como gestores e profissionais da saúde.
Nesse sentido, as Conferências Livres de Saúde (CLS) compõem os mecanismos de participação social em saúde, assim como fazem parte da etapa preparatória das etapas oficiais. Prescindindo de alguns processos oficiais, como quórum mínimo e representatividade por segmentos, as CLS possibilitam a ampliação da participação social no SUS. A CLS relatada no presente trabalho, sob o tema "As interseccionalidades no contexto do Sistema Único de Saúde", foi realizada em Belém do Pará, na Universidade Federal do Pará, campus Belém, para compor a etapa preparatória da 17ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), tendo por objetivo formular propostas com o recorte amazônica em torno do tema da 17ª CNS e eleger pessoas delegadas com representação estudantil.
A CLS em questão foi realizada em dois dias: no primeiro, houve uma série de debates que abordaram as especificidades das amazônias e seus povos, tal como a mesa "Saúde na Amazônia: desafios e possibilidades", assim como falas de representantes discentes da universidade, a fim de inserir e situar os participantes no que tange às interseccionalidades vivenciadas por povos amazônicos, assim como suas demandas no Sistema Único de Saúde, bem como engajar os alunos nos processos de debate em torno do tema; No segundo dia, realizou-se a divisão dos participantes nos seguintes eixos:
Eixo I – O Brasil que temos. O Brasil que queremos.
Eixo II – O papel do controle social para salvar vidas.
Eixo III – Garantir direitos e defender o SUS, a vida e a democracia.
Eixo IV – Amanhã vai ser outro dia para todas as pessoas.
Houve em cada eixo a elaboração conjunta das diretrizes e propostas da conferência, tendo sido todas votadas dentro de cada eixo e, a posteriori, votadas e aprovadas/modificadas na plenária final, a qual reuniu todos os participantes da conferência.
Obteve-se, ao fim da CLS, quatro diretrizes, tendo cinco propostas cada uma, que, em sua totalidade, levaram em conta as especificidades dos territórios e subjetividades amazônidas, tal como a diretriz do eixo III e suas respectivas propostas:
Diretriz: Prevenção, promoção e proteção da saúde na Amazônia a partir das especificidades dos seus territórios e a representatividade indígena, ribeirinha, quilombola, da população negra, cigana, parteiras, povos de cultura de matriz africana e/ou demais povos tradicionais e outros povos como garantia do princípio da equidade no SUS.
Proposta: Garantir a presença de acompanhante e/ou tradutor e intérprete para viabilizar a comunicação entre equipe de saúde e usuário/a/e com deficiência auditiva, indígenas e outras nacionalidades e seus descendentes.
Além disso, houve a eleição de quatro pessoas delegadas, sendo todos estudantes - dois da graduação e dois da pós-graduação -, os quais defenderam e debateram na Conferência Estadual em Saúde as diretrizes e propostas aprovadas.
Por ter sido realizada dentro de uma universidade, a conferência contou majoritariamente com a participação estudantil, tendo sido possível observar, portanto, a CLS em questão como um importante dispositivo formativo e de cidadania, tendo em vista o engajamento prático de futuros profissionais da saúde no processo de controle social no SUS, espaços os quais não são tradicionalmente ocupados por este segmento social, além de permitir o debate dos alunos com profissionais da saúde, gestores da saúde, movimentos sociais e usuários do SUS, promovendo um entrelaçamento de várias perspectivas, saberes e vivências.
O Brasil é um país extenso em território, população e cultura. Assim, a garantia do olhar para essas diversidades é imprescindível para as diretrizes do SUS, principalmente a equidade e regionalização. Nesse sentido, é fundamental salientar a imprescindibilidade de garantir que as políticas públicas de saúde para a Amazônia sejam formuladas, debatidas e aprovadas na própria região, tendo em vista as particularidades territoriais e culturais vivenciadas pelo território. Assim, ao propor um espaço de debate sobre saúde em um lugar tão amplo e diverso como uma universidade pública, possibilita-se, de fato, que as políticas de saúde sejam formuladas de maneira horizontal e inclusiva.
Ao considerar a vasta diversidade presente na Amazônia, tanto em termos geográficos quanto culturais, é evidente que as políticas de saúde precisam ser sensíveis a essas nuances. Uma abordagem que permita a participação ativa das comunidades locais na tomada de decisões sobre sua própria saúde é essencial para garantir que as políticas sejam eficazes e relevantes para as populações amazônicas.
Nesse contexto, as universidades públicas desempenham um papel crucial como espaços de debate e construção coletiva de conhecimento. Ao promover espaços de discussão sobre saúde dentro dessas instituições, abre-se espaço para uma abordagem mais horizontal e efetiva na formulação de políticas de saúde.
Apesar da diversidade social encontrada em uma universidade pública, sabe-se, no entanto, da persistência de padrões históricos de segregação em tais ambientes. Contudo, é imprescindível fomentar debates sobre políticas de saúde dentro de ambientes acadêmicos, permitindo a ativa participação, por exemplo, de movimentos sociais, a exemplo do Movimento da Luta Antimanicomial do Pará, cuja presença foi marcante na recente conferência. Tal iniciativa não apenas engaja os estudantes nos processos de discussão, mas também promove a inclusão de diversos estratos sociais. Ao trazer para dentro da universidade esse diálogo interativo, estamos não só ocupando esses espaços, mas também resistindo às práticas excludentes do passado. Essa abordagem não apenas enriquece o ambiente acadêmico com perspectivas diversas, indo além do tradicional enrijecimento acadêmico das práticas de cuidado, mas também fortalece a democratização das políticas de saúde, alinhando-se com os princípios fundamentais presentes na institucionalização do SUS.