Este trabalho retrata a experiência de construção e implementação do Projeto Terapêutico Singular (PTS) em um ambulatório de pediatria de um hospital terciário da rede pública de saúde do município do Rio de Janeiro, como um espaço promotor do cuidado interprofissional de crianças e adolescentes com condições crônicas complexas de saúde (CCCs) e de formação interdisciplinar para residentes da área da saúde. Motivados pelo desafio de propor ações inovadoras e integradoras ao projeto pedagógico de um programa de residência multiprofissional, foi constituído um grupo de educação permanente (EP), que se reuniu regularmente entre setembro de 2020 a abril de 2021. O grupo foi composto por representantes de sete áreas profissionais em saúde integrantes do programa de residência multiprofissional, sob supervisão de duas consultoras externas, com experiência em metodologias ativas e EP em saúde.
A metodologia de trabalho, baseada nos pressupostos da EP, envolveu: identificação de situações-problema no campo da formação de residentes multiprofissionais; definição de questões orientadoras de aprendizagem; busca individual de literatura para estudo; análise crítica e reflexiva dos materiais e das demandas identificadas; produção coletiva de sínteses; e proposição de estratégias de ação. Em paralelo ao grupo de EP, um grupo de profissionais de medicina, enfermagem e serviço social do ambulatório de pediatria da instituição, mobilizado pelo agravamento das situações de vulnerabilidade deflagradas pela pandemia de Covid-19, se reunia para buscar soluções que produzissem melhora na organização do cuidado e retomada da pactuação entre profissionais, instituição e famílias de crianças e adolescentes com CCCs. Para isto, utilizavam uma proposta de PTS, porém, sem articulação com os programas de residência.
O trabalho do grupo de EP teve continuidade e se estruturou em quatro fases: 1) Análise dos modos de organização dos cenários de prática do curso de residência multiprofissional, na qual identificou-se a existência de múltiplos cenários com curta duração e espaços de aprendizagem uniprofissionais com pouca interação multi e interprofissional. Observou-se, portanto, disparidade entre a proposta do projeto pedagógico, que valorizava a oferta de espaços interprofissionais de aprendizagem, e a realidade do cotidiano institucional, onde as relações de poder e a racionalidade biomédica orientadora do modelo de cuidado, apresentavam-se como desafios para constituição de cenários práticos com ações integradas; 2) Análise das necessidades e possibilidades para a implementação de novos cenários interdisciplinares e interprofissionais. Para tanto, foi elaborado um mapa cartográfico para visualização de todos os cenários de prática dos residentes por área de formação e realizada a identificação dos campos formativos com maior densidade de demanda e inserção de diferentes áreas profissionais. O mapa permitiu que fossem detectadas os espaços institucionais de formação considerados prioritários e mais disponíveis para implementação de ações de formação interprofissional, com foco no usuário e no fortalecimento da linha de cuidado de crianças e adolescentes com CCCs. Neste movimento, o ambulatório de pediatria foi selecionado devido à sua importância para esta linha de cuidado, à sua relação intrínseca com as unidades de internação, com os ambulatórios especializados e com a rede externa de atenção à saúde; 3) Convite a atores institucionais estratégicos, tais como gestores institucionais, a equipe propositora do PTS ambulatorial de pediatria e a docente da disciplina “Integralidade e Interdisciplinaridade” do eixo teórico transversal dos programas de residência multiprofissional e de enfermagem, para se integrarem às discussões do grupo de EP. 4) Reuniões ampliadas para construção da proposta e da metodologia para implementação. Neste processo foi elaborada a ementa do PTS ambulatorial e realizado o planejamento do calendário de atividades. Além disso, a equipe do ambulatório de pediatria apresentou casos emblemáticos elegíveis para o PTS no grupo da EP. Uma vez elencados os casos, realizou-se o convite, a organização e o treinamento da equipe de preceptores de campo da residência multiprofissional para apoio às atividades do PTS. Por fim, foi feita a apresentação da proposta aos residentes.
A proposta foi implementada a partir de maio de 2021 e, desde então, tem como objetivo proporcionar aos residentes um espaço de articulação teórico-prática, com foco nas tecnologias leves, orientado para o cuidado integral centrado nas necessidades do usuário e sua família e para o trabalho em equipe interprofissional. Neste espaço de formação/cuidado foram acionados e praticados os conceitos-guia de clínica ampliada, interdisciplinaridade, equipes de referência, apoio matricial, gestão do cuidado, participação-autonomia, vulnerabilidades, redes de apoio e proteção, entre outros. Operacionalmente, no ano de implementação do projeto-piloto, quatro casos de grande complexidade foram acompanhados longitudinalmente, no formato de PTS ambulatorial, através de encontros mensais realizados de março a dezembro, por grupos de composição multidisciplinar, com funcionamento interprofissional. Os residentes das áreas de Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Nutrição, Psicologia, Serviço Social e Terapia Ocupacional foram distribuídos em quatro grupos, tendo como critério-guia para a montagem das equipes as necessidades prioritárias de cada caso. Uma equipe composta por médica, enfermeira e assistente social do ambulatório de pediatria foi responsável pela escolha dos casos e desenvolvimento de cada PTS. Além disso, preceptores de campo, vinculados ao programa de residência multiprofissional, foram organizados em duplas para o acompanhamento longitudinal e estudo dos casos, orientação dos residentes quanto à reflexão crítica da construção do trabalho interprofissional e organização das eventuais necessidades de cuidado específicas em cada caso. A partir do ano de 2022, os residentes do programa de enfermagem pediátrica foram integrados às atividades do PTS ambulatorial, bem como os da residência médica. Contudo, pela estruturação do programa, a inserção da medicina ocorreu de forma pontual, não havendo continuidade nos anos seguintes. Ao longo de cada ano, são realizados encontros ampliados e programados de avaliação da atividade, com apresentação e discussão das potencialidades e fragilidades.