Apresentação: Definida como um grupo populacional heterogêneo, que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, a população em situação de rua (PSR) no Brasil vem se intensificando nas últimas décadas muito além das grandes metrópoles. A pluralidade de vivências da PSR evidencia vulnerabilidades, como a insegurança alimentar, a indisponibilidade ou a dificuldade do acesso à água potável, privação de sono e de afetividade, além da exposição a diversos vetores etiológicos para várias doenças e agravos. Do mesmo modo, também é possível observar o predomínio de infecções sexualmente transmissíveis, desnutrição severa, problemas bucais, sofrimento psíquico, uso e abuso de drogas lícitas e ilícitas, violência física e sexual, gravidez e doenças crônicas sem o controle periódico. Em detrimento dessa alta vulnerabilidade e dos diversos adoecimentos à saúde prevalentes nessa população, é importante ressaltar que ainda são recorrentes os relatos de recusa em ir para unidades de saúde devido a episódios de mau atendimento em hospitais, de negação a atendimento e impedimento de entrada nas unidades de saúde. Nesse contexto, o presente estudo tem por objetivo compreender as necessidades de saúde da população em situação de rua e caracterizar as experiências de acesso a serviços de saúde em município de médio porte do interior paulista. Desenvolvimento do trabalho: Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa, exploratória, do tipo estudo de caso, desenvolvida com PSR que se utilizam do “Espaço Acolhedor” no município de Botucatu, no interior do estado de São Paulo. Foram ouvidas 12 PSR no período de setembro de 2023 a janeiro de 2024. As informações foram obtidas por meio de entrevistas semiestruturadas realizadas de forma presencial conjuntamente com PSR e Espaço Acolhedor a partir de roteiro composto por perguntas abertas e fechadas. As entrevistas tiveram duração média de 30 minutos e foram transcritas e analisadas a partir da referencial da Análise de Conteúdo na modalidade Temática. Resultados: Neste estudo, nota-se a predominância do sexo masculino, resultado semelhante a outros estudos presentes na literatura. Além disso, em relação à escolaridade, grande parte da PSR não chega a completar o ensino fundamental. Porém, em relação à raça/cor, o presente trabalho difere dos dados contidos na literatura, visto que a maioria dos participantes se consideram branco, sendo que no Brasil, há predomínio de autodeclarados como negro ou pardo. De modo semelhante, também pudemos constatar em nossos interlocutores a menção aos problemas familiares, desemprego, alcoolismo e dependência química como os principais fatores que os levaram e os mantém na condição de PSR. A grande maioria dos participantes deste estudo descreveu a vivência nas ruas como sendo algo ruim e permeada por sofrimentos e dificuldades, predispondo ao adoecimento nas ruas. Em oposição, alguns participantes relataram estar acostumados com essas situações e que algumas vezes acabam não se incomodando com isso, podendo estar associado a liberdade que a rua lhes dá quanto ao uso de drogas e bebidas sem serem julgados pelos familiares. Nas entrevistas, em concordância com a literatura, foi relatado situações de preconceito, discriminação e violência, além do sentimento de desconfiança, medo e indiferença pela população em relação a PSR, reforçando a invisibilidade social. Durante a pandemia de COVID-19, houveram poucos relatos ruins, pois a maioria dos entrevistados não estavam em situação de rua neste período, apresentando apenas dois relatos negativos em relação ao isolamento. Vale ressaltar que apesar da disseminação da COVID-19 ser democrática, a desigualdade social causa riscos distintos de adoecimento. Além disso, vale ressaltar a predominância do abuso de álcool e outras drogas pela PSR, estando relacionado à instabilidade e ruptura familiar, sendo a principal variável para a situação de rua. Além disso, o custo de drogas como crack ou cachaça é inferior ao valor de uma refeição, impulsionando o uso desses produtos, além de acabarem mascarando a fome, o frio, sendo um meio para conseguirem relaxar e dormir. Em relação aos problemas de saúde nesta população, foram visualizando na pesquisa a presença de indivíduos com hipertensão arterial, diabetes mellitus, tuberculose e hepatite C. Quanto ao acesso aos serviços de saúde, identificamos que o Sistema Único de Saúde consegue se fazer presente na vida de todos os entrevistados, principalmente pela atenção primária do município. Tais informações divergem da literatura, visto que há uma predominância na procura de hospital/emergência quando estão doentes. Além disso, ressalta-se a importância do Consultório na Rua (CnaR) junto a PSR, devido ao trabalho de busca ativa e mediação com a rede de atenção à saúde do município, possibilitando ações conjuntas e direcionadas a fim proporcionar um cuidado ampliado a esses indivíduos. Houve predominância de sentimentos positivos aos serviços, ressaltando empatia e compromisso dos profissionais com a PSR, principalmente quando se trata dos cuidados primários em saúde. Todavia, há também descontentamento quanto ao tratamento recebido em serviços de urgência e emergência do município. Dessa forma, fica claro que alguns serviços não estão preparados para atender as peculiaridades dessa população, pois ainda há muito preconceito e discriminação pelos próprios profissionais da saúde, dificultando a aplicação dos princípios do SUS. Considerações finais: Considera-se que o delineamento qualitativo permitiu uma compreensão da realidade social dos entrevistados, e em suas produções humanas, particulares e construídas no mundo das relações e das representações, aspectos esses imensuráveis. De modo geral, constatamos que as informações obtidas neste estudo, corroboram os achados da literatura nacional e internacional sobre o tema, principalmente no que se refere às características sociodemográficas da população em situação de rua, com exceção do marcador raça/cor, o qual a maioria de nossos interlocutores se definiu enquanto homem branco. Reconhecemos as limitações de um estudo com PSR desenvolvido a nível local, mas destacamos a importância de maiores estudos sobre suas experiências de acesso a serviços de saúde, em condições de contribuir para o aumento da visibilidade das principais demandas e necessidades de saúde dessa população, assim como na produção de informação que subsidiem a elaboração de programas, políticas públicas e tomada de decisão em contextos semelhantes.
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