Apresentação: O presente relato de experiência abordará sobre a criação, desenvolvimento e expansão do grupo terapêutico da pessoa idosa, no qual desenharemos aqui, sem fechar seus contornos, algumas ações de produção e promoção da saúde a partir do diálogo entre bem-viver, esquizoanálise e elementos do nosso território amazônico. Grupo este desenvolvido na Unidade de Saúde do Satélite, também em parceria com uma paróquia local, onde ocorrem seus encontros no salão de suas dependências, situado no bairro periférico na cidade de Belém (PA).
Desenvolvimento: Articular promoção da saúde da pessoa idosa no âmbito da atenção primária impõe a necessidade de ir mais além do modelo biomédico hegemônico. Como ponto de partida, é preciso dialogar com outros saberes e suas narrativas de cuidado. Presos a esse modelo explicativo, corremos o sério risco de assujeitamento e apagamento pela colonização do padecimento. Colonização que opera a redução à biologia desses corpos, despotencializando-os sob os acordes do desencontro entre sua história singular e coletiva e a identificação sintomática de suas afecções atuais. Tornam-se pessoas-idosas-sem-história, para dar lugar ao historial clínico de sua biologia. E foi mediante à escuta de idosos e idosas sobre seus diversos desencontros, do calar, da imobilidade e das solidões narradas nas consultas psicológicas individuais, muito acentuadas no período sindêmico, que se fez necessário emergir o grupo terapêutico com esse público, com todos os cuidados preconizados para acontecer os encontros, viabilizados com as primeiras doses da vacina contra Covid-19 em 2021. Nessa trajetória, costuramos uma tessitura coletiva em diálogo com a perspectiva do narrador e a sabedoria ancestral, no intuito de retomar o conhecimento produzido pela oralidade no processo da experiência coletiva. A experiência na arte de narrar, tão pertencente à vida amazônida, passa a ser o principal dispositivo de cuidado. Dessa maneira, fez-se importante resgatar uma produção de conhecimento sobre o cuidado de si por meio da oralidade e, inevitavelmente, da arte da escuta, pois uma não caminha sem a outra. Narrar como uma possibilidade instituinte de entremear experiências. Nessa composição, os encontros tomaram proporções de análises e temáticas que não mais focavam apenas no discurso passivo e repetitivo do que lhes faziam sofrer. Estimuladas a narrarem suas experiências na primeira pessoa, prestando atenção no que poderiam trazer de prático, produz-se a possibilidade de se enriquecer em meio à escuta norteada pelo princípio ético do respeito às diferenças. À vista disso, o grupo terapêutico não se configurou num lugar instituído para reforçar padrões sociais e igualá-los, pelo contrário, é um espaço construído pelo movimento de todas e todos, assegurando a participação de cada pessoa idosa em sua singularidade, ritmo, disponibilidade e interesse. Nessa perspectiva, priorizando uma construção de saber pela partilha das narrativas de cada participante, conversa-se aqui com o saber ancestral do bem-viver, pois instiga que o coletivo é uma maneira de criar novos modos de vida, para além daquilo que já está posto, e de renovar essa matriz comunitária. Associar o bem-viver à saúde coletiva não é transformá-lo em técnica, isso seria o avesso da sua análise crítica, mas sim de uma postura política nesse trajeto de recriar práticas coletivas de cuidado e partilhar experiência pela oralidade. Nesse sentido, vale ressaltar que a construção da perspectiva do bem-viver é um saber ancestral que se atualiza no movimento presente, sem anular outros saberes. Prosseguindo nessa caminhada, cultivou-se alguns elementos essenciais do bem-viver e da esquizoanálise no rearranjo de uma relação comunitária, produzindo reciprocidades, convivência em harmonia com a natureza, solidariedades, construção de conhecimento livre de preconceitos, composição de outras alternativas de vida, questionamentos sobre o conceito eurocêntrico de bem-estar, entre outros. Por isso, contribuir para a dissolução das amarras da pessoa.idosa-sem-história, descolonizar sua experiência, passa por agenciar seus saberes no cuidado de si. Tal agenciamento se dá na desconstrução de um manicômio invisível, presente naquilo que mesmo um serviço de atenção primária pode ativar como instituição total, para que o grupo seja um dispositivo ético-estético-político. Dispositivo no qual, enquanto movimento micropolítico, agencia aberturas para os diferentes modos de protagonizar em meio às singularidades do envelhecimento de cada participante, como um dos motores na composição do cuidado de si e do outro. Desse modo, partimos do princípio do devir-grupo, em que há espaço para a construção de saberes num traçado que prioriza a transversalidade, autonomia e autogestão nesse processo, considerando as multiplicidades que atravessam o território em suas demandas afetivas, sociais, culturais e econômicas, dentre as várias temáticas que possam se manifestar.
Resultados: A partir de um fluxo de produção e promoção da saúde e do cuidado vivo e em ato da pessoa idosa, que favoreceram sua cumplicidade e seu protagonismo nos encontros, um grupo menor de 8 a 10 participantes se expandiu para uma frequência de 25 a 30 participantes, tornando pequeno o auditório da Unidade de Saúde do Satélite. Com a parceria com uma paróquia local, nossos encontros puderam ocupar um espaço para melhor acolher os que chegavam e ainda estão chegando. Nessa trajetória de construção conjunta do cuidado coletivo em saúde mental também recorremos à arte, seja nas temáticas, seja na elaboração de campanhas específicas, como o combate à violência contra pessoa idosa, em que trabalhamos com a performance do teatro do oprimido. Nesse sentido, os diversos jeitos de fazer arte como um modo provocativo, que instiga e transmuta um grupo-sujeito a se enriquecer e se expandir em outros desdobramentos e parcerias. Destacamos aqui a parceria com a Secretaria de Esporte e Lazer da Prefeitura de Belém, facilitada também pela UMS Satélite. Dessa maneira, uma cumplicidade no cuidado com o professor de educação física foi estabelecida no projeto, no qual, a partir do interesse dos integrantes, criamos um grupo de dança que trouxesse a relação com nossa cultura, sendo a dança mais cogitada o carimbó. A primeira apresentação ocorreu na unidade de saúde em homenagem ao dia das mães, depois dançaram em várias festividades, inclusive numa ação em saúde mental organizada pela Secretaria Municipal de Saúde, na chamada Praça da República, localizada no centro da cidade, e na festa junina de uma Escola Municipal Infantil do bairro. Devido ao seu crescimento, já nomeado como Grupo de Vivência da Pessoa Idosa, as atividades físicas são realizadas na quadra da paróquia local. E em assembleia elegeram uma equipe para representar e articular parcerias e interesses do coletivo, mediante sempre uma consulta democrática. Desse jeito, desde 2022, organizam uma festa junina na comunidade, na qual se apresentam e movimentam parcerias locais, resultando na aquisição de materiais esportivos (pesos e colchonetes) para as atividades do grupo.
Considerações finais: Portanto, sem fechar a análise do movimento coletivo e nem se colocar como modelo, os desdobramentos na confecção do cuidado e cumplicidade com o Grupo de Vivência da Pessoa Idosa mostram os efeitos potentes dos encontros, que acolhem as pessoas em suas histórias, devires e saberes transversalizados no pulsar ético da vida. E mesmo com algumas dificuldades, produz-se ações solidárias voltadas para quem vivencia algum padecimento. Nesse aspecto, dialogar o bem-viver e a esquizoanálise no grupo foi imprescindível para somar na construção de práticas inovadoras, emancipatórias e singulares no cuidado, abrangendo as multiplicidades do território para compor uma saúde mental coletiva decolonial amazônida.