Apresentação
O aborto é uma questão de saúde pública que afeta significativamente a saúde das mulheres brasileiras. No contexto mundial, países com leis restritivas com relação ao aborto possuem taxas mais altas de abortamentos inseguros, quando comparados com os que possuem políticas de legalização e legislações que garantam os direitos das mulheres.
No Brasil o atendimento às mulheres deve ser ofertado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), porém as usuárias enfrentam dificuldades em ter seus direitos garantidos, mesmo nos casos em que o aborto é permitido por lei. As ações dão corpo às normas técnicas e às legislações sobre o tema e é neste espaço que se aposta na busca por elementos que possam colaborar com a construção de um movimento mais progressista e que preserve os direitos e a vida das mulheres.
Diante desse contexto e considerando a importância de garantir um atendimento em saúde seguro, torna-se relevante identificar quais são as orientações descritas na literatura oferecidas às mulheres em situação de abortamento. Assim como, discutir como o atendimento oferecido no âmbito do SUS pode ser produtor de iniquidades em saúde no que tange o cuidado a estas usuárias.
Desenvolvimento do trabalho
Trata-se de uma Revisão Integrativa da Literatura que objetivou analisar o que a literatura científica revela acerca das orientações sobre abortamento prestadas/oferecidas no contexto do SUS.
Esta pesquisa seguiu as seguintes etapas: Identificação do tema e seleção da hipótese ou questão de pesquisa; Estabelecimento de critérios para inclusão e exclusão de estudos/amostragem ou busca na literatura; Definição das informações a serem extraídas dos estudos selecionados/categorização dos estudos; Avaliação dos estudos incluídos na revisão integrativa/avaliação dos dados; interpretação dos resultados; Apresentação da revisão/síntese do conhecimento. A partir da aplicação da estratégia PICO, foi construída a questão norteadora: quais são as orientações (encaminhamentos, recomendações, acolhimento) sobre abortamento descritas na literatura científica no contexto do SUS?
Os critérios de inclusão foram: estudos que respondessem à questão norteadora da pesquisa, com ano de publicação de 2019 ou superior a este e, publicado nos idiomas português, inglês ou espanhol. Foram excluídas publicações que não estivessem disponíveis na íntegra ou em formato diferente de artigo científico (teses, dissertações e monografias).
Resultados
O rastreamento dos estudos computou 143 publicações, após a seleção e refinamento dos textos de acordo com os critérios de inclusão e de exclusão compõem o corpus de análise deste estudo seis artigos. Realizou-se análise temática após análise dos artigos que compuseram a amostra desta revisão, a qual emergiu dois temas principais: violação de direitos durante o atendimento em saúde e, as barreiras de acesso ao aborto legal.
A mais frequente violação de direitos relatada nos artigos foi a exigência de boletim de ocorrência e laudo de perícia para autorização de aborto legal em caso de violência sexual. As pesquisas evidenciam questionamentos frequentes da veracidade da palavra da mulher quando ela relata que a gestação é consequência de uma violência sexual. A mesma postura de dúvida também está presente nos casos em que mulheres buscam atendimento por aborto espontâneo ou ameaça de aborto.
Dentre as barreiras para o acesso ao aborto legal revelou-se que há instabilidade jurídica no atendimento das mulheres nos diferentes níveis de atenção à saúde. Também, destaca-se o julgamento moral e religioso dos profissionais acerca da prática de aborto, influenciando no plano terapêutico e de acolhimento. Outra situação recorrente encontrada nos artigos foi a alegação de objeção de consciência por parte dos profissionais, negando a realização do procedimento, sendo um importante nó crítico no fluxo de atendimento das mulheres em situação de aborto.
Destaca-se que o não cumprimento das normas técnicas sobre abortamento pode ter como causa a formação acadêmica deficiente. As evidências indicam o desconhecimento por parte dos profissionais médicos sobre a responsabilidade ética de garantir o atendimento por outro profissional quando alegada a objeção de consciência. Este fato, também, ocorre quanto a dispensa de apresentação de documentos comprobatórios de violência sexual quando solicitado aborto legal. Ainda, a formação acadêmica tem como foco a recuperação física e reprodutiva, sem dar ênfase na esfera psicológica e social envolvidas nesse processo.
As evidências apontam para o atendimento mecanicista e focado em procedimentos. Foi verificado que, no contexto da Atenção Primária em Saúde, houve a indicação de que os profissionais ressaltaram a valorização da mulher sobre seu próprio corpo e a decisão informada apesar das dificuldades em encaminharem as mulheres para serviços de atendimento, os mesmos achados não foram indicados no contexto hospitalar.
Os estudos revelam a necessidade de discussão acerca do quanto a normatividade das ações dos profissionais pode ser produtora de iniquidades no acesso ao SUS. A forma como os serviços têm recebido e acolhido as mulheres em situação de abortamento tem inviabilizado suas necessidades e construído um aparato de atitudes dos profissionais que podem dificultar um atendimento digno/seguro ou ofertar ações em saúde altamente restritivas. O julgamento e a postura tecnicista dos profissionais de saúde afasta as mulheres dos serviços, e consequentemente diminui as chances dela buscar atendimento qualificado. Isso resulta na ampliação das iniquidades à saúde das mulheres e na ameaça aos seus direitos, sobretudo para comunidades mais vulneráveis especialmente do ponto de vista social.
Considerações Finais
Os resultados apontaram que a atenção à saúde das mulheres em situação de abortamento vai ao encontro dos movimentos em defesa dos direitos das mulheres. Evidenciou-se o quanto as mulheres ainda se deparam com posturas que reforçam as violências institucionais e as violações de direitos. Quando as mulheres buscam atendimento, o fluxo de cuidado é interrompido pelo desconhecimento da norma técnica vigente, sendo exigidos documentos que representam barreiras para um atendimento digno e que preserve suas vidas. A objeção de consciência segue sendo alegada, mesmo sem justificativa plausível e representa outra importante barreira no fluxo de atendimento.
Para o avanço no acesso ao direito ao aborto destaca-se a necessidade de melhoria dos currículos na formação de profissionais, o fortalecimento da atenção primária como fonte de informação segura para redução de danos.
Os resultados revelam implicações para a prática assistencial, como a necessidade urgente de sensibilizar os profissionais de saúde que atendem essas mulheres e promover educação profissional sobre as normas técnicas e evidências acerca do atendimento a situações de abortamento.