INTRODUÇÃO
Na década de 90, a violência emergiu como uma questão de saúde pública global, demandando abordagens interdisciplinares e intersetoriais para lidar com sua complexidade. Ao adotar o termo "violências", reconhece-se a diversidade de suas manifestações, influenciadas por interseccionalidades como classe, raça, gênero e sexualidade.
A violência de gênero, enraizada em desigualdades estruturais, tornou-se uma expressão significativa desse fenômeno, resultando em graves violações dos direitos humanos, incluindo mortes evitáveis. Apesar dos avanços legislativos, a violência contra as mulheres persiste no Brasil, com um terço das mesmas relatando ter sofrido algum tipo de violência.
Os movimentos feministas brasileiros desempenharam papel fundamental nesse contexto ao trazer visibilidade social e institucional às violencias contra as mulheres em seu cotidiano, provocando assim a criação de mecanismos institucionais de proteção e prevenção em vários espaços para além da segurança pública, como a saúde. A pandemia de COVID-19 evidenciou a necessidade de fortalecimento de políticas públicas de cuidado intersetorial, equânime e integral às mulheres, principalmente no cenário amazônico e em situação de violência domestica, em conjunto com respostas legislativas também alinhadas nesses princípios. É urgente ofertar acesso aos serviços de saúde no território amazônico que reconheçam e atuem como formas de garantia do direito a uma vida com dignidade.
Os estudos caracterizaram mulheres em situação de violência de maneira diversificada, refletindo desigualdades territoriais, barreiras de acesso e violações de direitos humanos. O cuidado em saúde é compreendido como uma ação integral, que reconhece a saúde como um direito fundamental. Ele envolve respeito, acolhimento e ações que visam construir a saúde como um projeto de cidadania. Os achados foram organizados em três eixos temáticos: Atendimento Humanizado, Intersetorialidade e Educação em Saúde.
No que se refere ao cuidado humanizado em saúde, embasado na Política Nacional de Humanização, destaca-se como um ethos ético que permeia as práticas de atendimento, enfatizando a importância da valorização da alteridade e da integralidade no cuidado às mulheres em situação de violência. Nesse sentido, a Atenção Primária em Saúde (APS) emerge como um espaço crucial para identificar e acolher casos de violência, especialmente durante o ciclo gravídico-puerperal.
As práticas humanizadas são descritas como aquelas que priorizam o acolhimento, a orientação baseada em evidências e uma escuta empática, reconhecendo as particularidades de cada mulher e suas relações sociais. No entanto, é ressaltada a necessidade de evitar uma abordagem ingênua, que possa silenciar as violências e processos de opressão subjacentes. A humanização do cuidado transcende protocolos clínicos, envolvendo atitudes de respeito, ética, empatia e acolhimento, além de mobilizar conhecimentos e disposições organizacionais. Essa abordagem busca promover uma relação de cuidado em saúde mais significativa, que reconheça a dignidade e os direitos fundamentais das mulheres, mesmo em contextos de vulnerabilidade.
A intersetorialidade emerge como uma estratégia fundamental para garantir o acesso ao cuidado em saúde, especialmente no enfrentamento à violência contra esse público em específico. Partindo do princípio da integralidade do Sistema Único de Saúde (SUS), essa abordagem busca promover a articulação entre diferentes políticas públicas, reconhecendo que a saúde está intrinsecamente ligada a diversos aspectos sociais, como moradia, educação, emprego e segurança. No entanto, a fragmentação dos serviços e a desarticulação entre os setores, especialmente nos territórios mais vulneráveis, representam grandes desafios para a efetivação dessa intersetorialidade.
No contexto amazônico, essa complexidade é acentuada pelas particularidades geográficas e socioculturais da região, exigindo uma abordagem sensível à diversidade de modos de vida. Os estudos analisados destacam a importância da participação ativa dos movimentos sociais no processo de construção e implementação de políticas públicas, evidenciando a necessidade de uma abordagem polissêmica e dinâmica, permeada pelo debate de gênero e saúde. A intersetorialidade, portanto, não se limita apenas à coordenação entre diferentes setores, mas também envolve a ativação de redes de apoio e a valorização das experiências e demandas trazidas pelos sujeitos envolvidos.
A educação em saúde se revela como um espaço de cuidado compartilhado para mulheres em situação de violência, transcendendo a mera transmissão de conhecimentos para uma prática colaborativa e reflexiva. Esse processo educativo não se limita a fornecer informações, mas busca promover uma compreensão crítica das condições de vida e das estruturas sociais que perpetuam as violações de direitos. Ao se engajar nesse diálogo horizontal, trabalhadores de saúde e usuárias dos serviços colaboram na construção de estratégias de enfrentamento às desigualdades e barreiras de acesso, reafirmando a potência de vida e solidariedade como formas de prevenção e resistência.
Estudos destacam o papel da educação em saúde na desconstrução de estigmas, na promoção de uma cultura de respeito e na valorização dos laços de afeto e solidariedade como ferramentas essenciais para o cuidado de si, do outro e de todos. Além disso, movimentos sociais desempenham um papel fundamental ao protagonizar o enfrentamento à objetificação do corpo da mulher e à naturalização da violência, promovendo uma postura de reivindicação e transformação nos processos de parir, nascer e viver. Assim, a educação em saúde se configura como um espaço de empoderamento e construção coletiva de possibilidades de bem-viver, atuando como uma ferramenta essencial na luta contra as violências de gênero e na promoção da saúde integral.