Resultado da luta de trabalhadores da saúde, associações de familiares, instituições acadêmicas, políticas e de pessoas com histórico de longos períodos de internação em manicômios, a Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) surgiu como um movimento que objetivava construir um novo modelo de cuidado para as pessoas com transtornos mentais. Inspirada na psiquiatria democrática de Franco Basaglia, trouxe o cuidado em Saúde Mental (SM) forjado na concepção de liberdade, autonomia, do cuidado em comunidade, da devolução do senso de cidadania e do espaço da cidade (não mais dos manicômios) às pessoas em sofrimento mental institucionalizadas e tuteladas pelo Estado.
Com vistas a superar o cuidado fragmentado e o modelo asilar, o fortalecimento dos cuidados em SM na Atenção Primária à Saúde (APS) tornam-se necessários. Campos e Domitti (2007) definiram Apoio Matricial como “arranjos organizacionais e uma metodologia para gestão do trabalho em saúde, que tem como objetivo ampliar as possibilidades de realizar-se clínica ampliada e integração dialógica entre distintas especialidades e profissões”. Na SM, o Matriciamento é uma proposta integradora e horizontal para a qualificação da oferta de serviços, devendo proporcionar retaguarda especializada, suporte técnico-pedagógico, vínculo interpessoal e apoio institucional no processo de construção coletiva de projetos terapêuticos, tendo como referência a população, a comunidade, a Estratégia Saúde da Família (ESF) e as equipes de matriciamento. No entanto, autores do campo da saúde coletiva apontaram o processo da contrarreforma psiquiátrica, vivenciado desde o ano de 2017, com a precarização de serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e da APS, gerando graves retrocessos.
Nesse sentido, este trabalho objetivou apresentar e analisar a organização da RAPS e o matriciamento no município de Natal/RN. O estudo é exploratório de caráter qualitativo, fundamentado na análise do discurso. Foram utilizados dados secundários com base em revisão bibliográfica acerca do tema e revisão dos instrumentos de gestão de 2022-2025 no que diz respeito ao apoio matricial e à RAPS em Natal. Os materiais utilizados foram os instrumentos de gestão e planejamento do Sistema Único de Saúde (SUS) (Plano Municipal de Saúde, Programação Anual de Saúde, Relatório Quadrimestral Detalhado Anterior e Relatório Anual de Gestão).
O Ministério da Saúde (2023), define a RAPS como “um conjunto de diferentes serviços disponíveis nas cidades e comunidades, que articulados formam uma rede, devendo ser capaz de cuidar das pessoas com transtornos mentais e com problemas em decorrência do uso de álcool e outras drogas, bem como de seus familiares, nas suas diferentes necessidades”, organizada em 6 componentes: APS; Atenção Especializada; Atenção às Urgências e Emergências; Atenção Residencial de Caráter Transitório; Atenção Hospitalar; e Estratégias de Desinstitucionalização e Reabilitação, tendo estes como porta de entrada os serviços de Atenção Básica, os Centros de Atenção Psicossocial - CAPS e os Serviços de Urgência e Emergência, promovendo o acolhimento das demandas referenciadas ou espontâneas.
De acordo com o Plano Municipal de Saúde (PMS) do município do Natal, a RAPS opera atualmente por sete componentes: Atença?o Ba?sica em Sau?de; Atença?o Psicossocial Estrate?gica; Atença?o de Urge?ncia e Emerge?ncia; Atença?o Residencial de Cara?ter Transito?rio; Atença?o Hospitalar; Estrate?gias de desinstitucionalizaça?o; e Reabilitaça?o Psicossocial.
O município divide-se em quatro regiões administrativas, sendo elas as regiões Norte, Sul, Leste e Oeste, e em cinco Distritos Sanitários (DS), sendo eles Norte I, Norte II, Sul, Leste e Oeste. Os CAPS estão distribuídos em três das quatro regiões administrativas, a saber: CAPSi II Oeste; CAPS II Oeste; CAPS II AD Norte; CAPS III Leste; CAPS AD III 24h Leste (PMS, 2022-2025). Conta ainda com Ambulato?rio de Prevença?o e Tratamento do Tabagismo, Álcool e outras Drogas - APTAD e Unidade de Acolhimento infanto juvenil.
Para uma cobertura satisfatória, o Ministério da Saúde (2008) propôs que houvesse um CAPS a cada 100.000 habitantes. Considerando este indicador e a população de 750 mil habitantes, a cobertura CAPS de Natal é considerada insuficiente. A cidade deveria ter ao menos sete CAPS.
Além disso, percebemos uma distribuição insatisfatória dos serviços tipo CAPS na cidade. Os distritos sanitários Norte II necessitam abrigar três serviços do tipo CAPS, já que são as maiores zonas administrativas do município. No entanto, os cinco CAPS existentes são distribuídos nas regiões Leste, Oeste e Norte II. A Região Sul não oferta esse tipo de serviço. Além disso, o município dispõe de apenas um CAPS tipo III. Este cenário se mostra desafiador, trazendo dificuldades no que se refere a acessibilidade para as populações da Zona Norte e Zona Sul, o que se agrava em um cenário caótico em relação à mobilidade urbana na cidade. Além disso, dificulta a construção de ações territoriais mais próximas das redes comunitárias, de saúde e intersetoriais.
O PMS de Natal tem como um de seus objetivos incorporar Atenção Psicossocial em 100% das ações voltadas aos grupos terapêuticos e/ou operativos da APS, além da meta de criação do CAPS Infanto Juvenil na Região Norte para atender usuários/as dos distritos Norte I e Norte II, planejada para o ano de 2024. Porém, nos estudos realizados, não há planejamento documentado nos relatórios para o cumprimento desses objetivos, nem dimensionamento realizado para a criação do CAPS mencionado. Além disso, prevê a criação de um CAPS por Distrito Sanitário, porém, não foram identificadas ações vinculadas a esse objetivo.
No que se refere a SM na APS, as ações de matriciamento no PMS não aparecem bem definidas e não se coadunam com o conceito do que é fazer matriciamento elaborado por Campos e Domitti (2007). Além disso, nas avaliações dos relatórios, menciona-se que “a SMS Natal está realizando capacitações sobre matriciamento” em diversos estabelecimentos de saúde, mas sem aprofundar se de fato existem ações de matriciamento no município.
No SUS, a APS é a ordenadora da rede e se caracteriza como o primeiro nível assistencial, com alta capacidade de resolução e com potencial para assegurar a continuidade do cuidado. Ao se integrar Equipes de Apoio Matricial na estrutura da APS, além de equipes de SM, pode-se proporcionar a integralidade do cuidado e a completude de ações atinentes a esse nível de atenção. Consideram-se ações de matriciamento pelas equipes de SM: elaboração de projetos terapêuticos singulares, interconsultas, visitas domiciliares conjuntas, uso de telefone e outras tecnologias.
A ausência de ações detalhadas, que descrevam o matriciamento realizado, reforça o distanciamento entre o que está posto nos instrumentos de planejamento e o conceito de matriciamento utilizado como parâmetro neste estudo. Portanto, a análise dos relatórios expõe a insuficiência de dados quanto a ações efetivas de apoio matricial, o que pode representar fragilidades no planejamento, execução e avaliação dessas atividades.
Além das dificuldades relacionadas à compreensão do que de fato se caracteriza como matriciamento, importa destacar ainda a conjuntura que envolve a dificuldade em constituir a ESF no município e de compor equipes multiprofissionais; a falta de Centros de Convivência, estratégia essencial para a promoção da SM; a presença de leitos psiquiátricos de internação compulsória instalados no Hospital Severino Lopes, localizado na Zona Sul da cidade. Essas questões, dentre outras, fragilizam a oferta de um cuidado articulado em rede e contribuem com a precarização das ações de SM na APS. É, portanto, urgente retomar ações de gestão efetivas para o aumento da cobertura do cuidado em SM para a garantia de um cuidado territorial e comunitário.