A formação interprofissional e centrada na comunidade constituem-se como centrais para a mudança do modelo de atenção à saúde no contexto brasileiro. Para tanto, faz-se necessário investir em experiências educativas integradoras de diversas graduações na área da saúde e inseridas na Atenção Primária à Saúde (APS). Buscando provocar tais mudanças nas graduações em saúde, no âmbito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), existe há 24 anos um componente curricular denominado Saúde e Cidadania (SACI I) que busca possibilitar, através de vivências nas Unidades de Saúde da Família (USF) do município de Natal/RN e seus territórios, a aproximação dos estudantes com as condições de vida e de saúde de comunidades e, sobretudo, fomentar a reflexão crítica sobre essas condições, o engajamento e a construção de intervenções possíveis nos cenários observados.
No presente resumo, buscamos relatar e refletir acerca de momentos vividos ao longo da disciplina que apontam para a sua relevância na promoção de uma formação colaborativa. Participaram dessas experiências profissionais e comunidades atendidas por duas USF em territórios de vulnerabilidade do município, bem como docentes e discentes dos cursos de Medicina, Odontologia, Enfermagem, Nutrição, Saúde Coletiva, Fisioterapia, Educação Física, Fonoaudiologia, Farmácia, entre outros. As turmas foram organizadas em grupos tutoriais constituídos por um docente responsável, estudantes de diferentes cursos e estagiários em docência da Pós-Graduação em Saúde Coletiva. Trata-se de um relato de experiência construído por docentes e pós-graduandos que realizaram o estágio em docência em SACI no ano de 2023.
Ao longo dos semestres, os grupos tutoriais realizam visitas semanais aos territórios e às USF, realizando passeios exploratórios para conhecer os equipamentos sociais, conversas com com moradores das comunidades e também rodas de conversas com os profissionais. Os estudantes realizam registros escritos, registros fotográficos e portfólios individuais. Os portfólios são instrumentos importantes utilizados em SACI no processo de avaliação da aprendizagem, estimulando a autonomia do estudante, o desenvolvimento de capacidade crítica e argumentativa, bem como a utilização de diferentes linguagens, a saber, fotos, desenhos, bricolagem, entre outros. Os estudantes são convidados a refletir sobre as problemáticas vivenciadas pelas comunidades em seus territórios e a construir conjuntamente uma proposição de intervenção.
Logo nos primeiros encontros, foram realizadas práticas grupais com o objetivo de acolher e aproximar os estudantes, para que eles pudessem conhecer uns aos outros, estimulando, desde então, a interação com colegas de outros cursos. Muitas outras atividades ao longo da disciplina foram realizadas em grupo, como a construção e apresentação de painéis sociais dos territórios conhecidos e seminários sobre temas relevantes e atuais na perspectiva da saúde e cidadania, além das intervenções produzidas por cada grupo ao final de cada semestre. Ao passar por esse processo, uma estudante concluiu que SACI é um “eterno trabalho em grupo”. Percebemos que há um tensionamento decorrente das diferentes formas de agir e se comunicar, dos diferentes graus de comprometimento para com a disciplina e suas atividades, entre outras diferenças. Desde o início da graduação, há uma tendência à construção de uma identidade profissional, gerando, por vezes, dificuldades na relação entre estudantes de cursos distintos. No entanto, ficou evidente em muitas discussões, a importância de diferentes olhares - partindo de diversos repertórios de vida e, de forma embrionária, de saberes de múltiplos núcleos - para a compreensão dos problemas de saúde das comunidades e também para a invenção de “soluções” possíveis. Estudantes que advém dos mesmos territórios periféricos que visitam contribuem na construção de olhares mais próximos da comunidade sobre os problemas ali vivenciados, recorrendo a seu repertório de vida para tecer redes na elaboração das propostas interventivas. Diferenças marcantes de raça e classe sociais foram identificadas pelos estudantes e moradores, gerando um processo reflexivo sobre as desigualdades sociais e suas implicações na produção do racismo ambiental, na falta de acesso à educação e moradias dignas, e consequentemente, nos adoecimentos.
Além disso, também observamos que outra dimensão de colaboração perpassou as experiências formativas relatadas, que foi a cooperação entre os estudantes e os profissionais de saúde. Os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) que acompanharam as turmas de SACI foram fundamentais não apenas na articulação das atividades dentro e fora das unidades, guiando os estudantes pelo território e nos equipamentos sociais, mas participando de muitas discussões com os grupos, onde compartilham as suas observações sobre o território e as pessoas por eles acompanhadas. Esses trabalhadores ensinam, através de suas memórias, sobre a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) nos territórios e da efetivação do direito à saúde e aparecem com destaque nos portfólios dos estudantes, refletindo tal relevância para formação dos futuros profissionais. Por outro lado, os trabalhadores declararam-se motivados a participar dos encontros, uma vez que percebem uma oportunidade de refletir sobre suas práticas e ressignificar o olhar para o território onde atuam.
Podemos ainda mencionar a colaboração dos usuários para a formação dos estudantes de SACI, posto que muitas pessoas abriram as portas de suas casas para receber os grupos e conversar sobre as suas experiências de adoecimento e de cuidados (seja na perspectiva do autocuidado, das relações comunitárias e com o SUS). Em uma atividade, os estudantes se dirigiram aos usuários que aguardavam atendimento e questionaram o que eles compreendiam por saúde, educação e por cidadania. Em seguida, os grupos discutiram a partir das respostas, que revelaram a necessidade de fortalecer a consciência dos sujeitos daquela comunidade sobre seus direitos, através da práxis sobre participação e controle social. Essa reflexão, somada à observação da inatividade do conselho comunitário, por exemplo, levou esse grupo a construir uma intervenção que consistiu em produzir materiais e realizar uma sala de espera para divulgar o referido conselho e enfatizar a importância do engajamento da população para garantir direitos, incluindo a melhoria do acesso à saúde. O diálogo que se abriu e o interesse despertado nos participantes da ação, demonstrou a pertinência do tema naquele cenário.
Observamos que o componente curricular SACI possui um caráter inovador no que se refere à interação ensino-serviço-comunidade e às metodologias de ensino problematizadoras e dialógicas utilizadas, destacando-se ainda a perspectiva interdisciplinar de trabalho. A complexidade das questões de saúde da população na contemporaneidade nos coloca diante do desafio de reinventar continuamente as práticas de cuidado e os modos de aprender e ensinar na direção da integralidade, da equidade, da humanização e da democracia, o que requer a transformação da formação dos profissionais para atuarem na APS. Concluímos que SACI representa um importante momento formativo, pautado na compreensão ampliada do processo saúde-doença-cuidado, considerando sua determinação social, e com o diferencial de fomentar o esmaecimento das fronteiras dos saberes dos núcleos profissionais e apostar na colaboração e nas trocas de saberes e experiências ? não apenas entre professores e estudantes de diferentes cursos, mas entre estes e os trabalhadores e as comunidades.