O crescente interesse na última década por estudos decoloniais, que se contrapõem a aspectos de uma cultura dominante eurocêntrica, tem colocado em evidencia o constructo do Bem viver em diferentes perspectivas na literatura da área. De origem indígena equatoriana o termo original é Sumak Kawsay e foi incorporado na constituição do Equador em 2008 e, posteriormente na da Bolívia em 2009, o que a partir de então, gerou uma crescente polissemia de estudos e referências, principalmente, na América Latina. O Sumak Kawsay, na concepção indígena, significa o “estado de plenitude”, ou “vida em plenitude de toda a comunidade vital”. Nessa perspectiva é uma forma de vida comunitária milenar que busca elaborar seus processos vitais de maneira harmônica, natural, interna e externamente com todos os seres viventes. A tradução do termo indígena sumak kawsay para bien vivir (bem viver), acaba trazendo a concepção de bem estar mais material do que a dimensão principal para os povos indígenas que é a espiritual, não fazendo ligação com a essência do fundamento original. É dessa essência do fundamento que tem se distanciado as diferentes concepções da tradução e, diante da diversidade de estudos sobre o tema, ocorre o risco de que tudo ou qualquer coisa possa ser considerada bem viver. O objetivo deste trabalho foi realizar uma revisão integrativa da literatura sobre o bem viver. Os textos foram pesquisados nos portais Periódicos CAPES e Scielo. Foram incluídos textos brasileiros e estrangeiros, sem distinção de área da publicação. Foi usado como descritores psicologia e bem viver, porém o boleano and reduziu o número do resultado. Para ampliar o quantitativo de textos optou-se pelo uso somente do termo bem viver. A partir dos doze textos selecionados, foram estabelecidas quatro categorias: Bem viver como os princípios originários de sumak kawsay; bem viver e o novo constitucionalismo latino-americano; bem viver e a dimensão ético-político; bem viver e decolonialidade. Como resultado, dentre os princípios originários do modo de vida comunitário tradicional do bem viver está o que se pauta na defesa e manutenção de um território concreto, no qual se constitui um cosmos vital em que entrelaçam elementos materiais e espirituais, um todo inter-relacionado constituído pela comunidade humana e seu entorno, ou todos os elementos da comunidade natural: a Natureza, Pachamama ou Mãe Terra. Para autores indianistas sumaq kawsay é marcado pela cultura andina antes do surgimento da modernidade e da colonização ocidental e o emprego da tradução do termo para bem viver é inadequado, sendo mais correto o emprego de vida plena. A segunda categoria é o bem viver e o novo constitucionalismo, a ideia inserida nas Constituições do Equador e Bolívia no final da década de 2000, são inspiradas nas concepções dos povos indígenas, quéchuas e aymaras principalmente no que se apoia a equidade social e a sustentabilidade ambiental. O termo foi inserido a partir da proposição de representantes do partido indigenista Pachakutik de inclusão do sumak kawsay na Constituição equatoriana. Diante da aceitação dos representantes oficiais do partido Alianza PAÍS, que a época, eram liderados pelo presidente da Assembleia Constituinte, a tradução de sumak kawsay ficou como “buen vivir”, para discussão através de um processo participativo para sua definição. A Constituição de 2008 do Equador ao inserir referências às raízes milenares de povos indígenas, a natureza como um ser vivente (Pachamama), carregou consigo as diversas formas de religiosidade e espiritualidade e também faz referências a heterogeneidade de culturas presentes no território, das lutas sociais de libertação contra as formas de dominação e colonialismo, da convivência cidadã, na diversidade e harmonia com a natureza, para alcançar o bem viver. A Constituição da Bolívia incluiu os preceitos de bem viver em 2009, no seu preâmbulo enuncia as intenções de se instalar uma sociedade mais igualitária, com respeito a diversidade étnica e cultural do povo boliviano, sendo os valores constitucionais pautados na ideia de respeito e na igualdade entre todos, com princípios de soberania, dignidade, complementaridade, solidariedade, harmonia e equidade na distribuição e redistribuição do produto social, no qual predomina a busca de viver bem. A terceira categoria reflete a dimensão ético-político subtendido na proposta do bem viver que de modo coerente, não se restringe aos que apoiam as mesmas causas ou compartilham a mesma visão de mundo. Essa concepção é possibilidade de pensar outros mundos, baseados na solidariedade, na força das coisas frágeis, que permite viver em harmonia com tudo que existe no cosmo de maneira não destrutiva de viver. Mas essa história não é recente, com base na ancestralidade indígena foi a partir da década de 1920 que a ação política toma forma de resistência organizada, nos moldes “modernos”, contra o Estado liberal capitalista e em articulação com outros movimentos e instituições classistas do espectro político da esquerda, sobretudo sindicatos e partidos socialistas e comunistas. Porém, foi somente a partir de 1970 que houve um deslocamento do aspecto político mais classista para o cultural considerando a opressão que indígenas estavam sofrendo como classe explorada. Todo esse movimento impulsionou a caminhada em direção da nacionalidade indígena, culminando nas décadas de 80 e 90 na criação confederações e partidos políticos no Equador e na ampliação da discussão política dos pressupostos ancestrais. A concepção ética de desenvolvimento atrelada a ideia de progresso passa pela superação da visão de natureza como um recurso inerte que pode ser explorado pelos humanos de forma em ampla escala com vislumbre de acumulação ilimitada. A quarta categoria da revisão aborda bem viver no sentido de preservar outras formas de felicidade, atreladas as relações entre as pessoas e não na coisificação das relações como vem acontecendo nas últimas décadas. E para que a concepção do bem viver possam ser colocadas em prática pelos povos que lutam por outro mundo, só poderão ser concretizadas por uma emancipação pautada nas dimensões contra-hegemônicas de poder, de saber e de direitos. O processo de estruturação do território latino-americano se deu principalmente pela colonização pautadas em aspectos de uma cultura dominante eurocêntrica, na qual houve uma lógica do poder dominante de uma cultura sobre outras avaliada por muitos como superior e, que passou para vida cotidiana dos colonizados. Essa lógica acaba desqualificando tudo aquilo que foge do padrão estabelecido pelas culturas hegemônicas e produz desigualdades entre os sujeitos colonizados, especialmente, na forma de tratamento quanto suas origens, sua cosmovisão e outros aspectos que por vezes anularam suas ancestralidades. A dificuldade de imaginar uma alternativa ao colonialismo perpassa pelo fenômeno de que o colonialismo interno não e somente uma política de Estado, mas ultrapassa para a vida social, o espaço público e o espaço privado, a cultura, e os modos de subjetivação da população colonizada. A breve revisão da literatura mostrou que não existe um caminho único para seguir nas discussões sobre o bem viver. Assim como a pluralidade cultural que envolve o tema, há uma ampla possibilidade de percursos a escolher. Diante da diversidade cultural encontrada na América latina, a relação do modelo decolonial e o bem viver atravessam o contexto ético-político para a decolonização do conhecimento de modo que as visões de mundo oriundas de saberes tradicionais também possam ser incorporadas na compreensão dos objetos e fenômenos da realidade social.