Múltiplos, polissêmicos e multifacetados. Mudanças de estações, contextos, percepções, direções. Se pudermos afirmar que a vida é dinâmica e plural, por que nos sentenciarmos a um plano que foi traçado em outras circunstâncias, ou à opinião de outros alguéns, ou à um diagnóstico?
Somos seres sociais, políticos e históricos, que carregam consigo as marcas produzidas por situações e pelas histórias que vivemos, como memórias de um corpo do sensível, tão real quanto o que é visível. Cada acontecimento que rompe nosso equilíbrio é sentido por nosso corpo, nos desestabiliza e nos exigi novos modos de sentir e agir e assim nos recompomos e nos tornamos outros. Um indivíduo frente à um diagnóstico sem possibilidade de cura, frequentemente recalcula sua rota, é marcado pela finitude da vida, pela fragilidade de um suspiro. Respiro.
Como podemos produzir cuidado em um contexto em que não há tempo para perder, onde o objetivo não é a cura? O cuidado em saúde é um acontecimento, em ato, que se constrói e se transforma cotidianamente no encontro com o outro, afetado pelas necessidades em saúde apresentadas, por diversos saberes, disputas, intencionalidades, por ferramentas e tecnologias utilizadas pelos trabalhadores de saúde.
Cuidamos da vida, mas como podemos cuidar da morte? A morte é o fracasso dos procedimentos ou de quaisquer protocolos? É antônimo do êxito de cuidado? Assim como a vida, o que seria a morte? O filósofo Baruch Espinosa já denunciava que não vivemos a vida, o que fazemos é tentar evitar a morte e transformamos a vida em um culto à morte. Será que nós, trabalhadores e serviços de saúde, rotulamos um prognóstico desfavorável como “não tem mais nada a fazer”, pois, é aí que começa o grande desafio do cuidar? Verdade seja dita, não há garantias de que não morreremos amanhã.
Nesse sentindo, fomos ao encontro da vida em ato, com o objetivo de cartografar a produção dos cuidados paliativos na atenção básica (AB) e dar visibilidade às possibilidades e barreiras para sua produção. A pesquisa versa sobre o trabalho em saúde, circunscrito na AB e, como este lugar pode constituir-se como dispositivo potente para o cuidado no território, particularmente aqui, o Cuidado Paliativo.
Apostou-se na perspectiva cartográfica, como abordagem metodológica, com o intuito de dar visibilidade ao processo de trabalho e gestão do cuidado, no tocante aos cuidados paliativos na AB. Para essa cartografia, partimos de uma unidade básica de saúde localizada em uma cidade de grande porte do sul do Brasil. O trabalho de campo aconteceu de dezembro de 2022 a maio de 2023 e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas, com parecer consubstanciado sob n° CAAE 62312022.0.0000.5231.
Caminharemos utilizando como disparador a estratégia de usuário-guia e, utilizando o diário cartográfico como dispositivo recordatório para registros das vivencias. Em campo, nos encontramos com dois usuários que nos afetaram e provocaram muitas reflexões acerca da produção de seu cuidado e da potência, que compõem e decompõe, suas redes de cuidado.
Alice, esposa e cuidadora do marido, acompanhada pela mãe, idosa, recém-viúva, foi diagnosticada com câncer cerebral em hemisfério direito há quatro anos, o quadro se intensificou após uma fratura de tornozelo após episódio de queda, provocada durante períodos de muita sonolência após suspender a medicação para tratamento do hipotireoidismo por conta própria, talvez cansada e sobrecarregada pelos cuidados desprendidos por tantos anos para si e para o companheiro.
Paulo, casado, 5 filhos e 5 netos, diagnosticado com câncer de próstata em 2012, e, câncer metastático na coluna em 2019, sendo necessário a realização de uma foraminotomia, que resultou em paraplegia, mas feliz por seu netinho mais novo gostar de seu colo por causa de seu tremor essencial. Além do acaso de ambos apresentarem diagnóstico de câncer (em órgãos-alvo diferentes), os dois trazem consigo a religiosidade e a família como seu sagrado, mas as histórias não se conectaram apenas por isso, a peculiaridade de suas redes de cuidado reverberou em nossos corpos.
Paulo, possui uma rede de apoio organizada, assim como seu fluxo na rede de cuidados, o que os proporcionava bastante conforto e segurança. Diferente de Alice, que foi encaminhada pelo hospital para a AB, mas os trabalhadores consideravam seu cuidado como atribuição da atenção terciária e não da AB. O atual modelo hegemônico de cuidado, está pautado em uma lógica burocratizada de redes formais.
Essa ideia de pertencimento a um serviço ou outro é ilusória, não existe uma fronteira territorial que delimita o cuidado, ou o espaço que esse corpo subjetivo e singular ocupa, os usuários percorrem uma rede de fluxos-conectivos em diferentes direções, articulam-se com outras equipes, com outros serviços e expandem suas conexões para além dos muros da unidade de saúde.
Nessa perspectiva, há pouca porosidade nas ofertas de cuidado programadas, protocolares, limitadoras e fundamentalmente prescritivas. Os trabalhadores, frequentemente, têm seus corpos marcados por práticas dicotômicas e reducionistas que cerceiam as ações de cuidado, agenciadas no encontro, sem admitir outros arranjos. Uma das inquietações das pesquisadoras era o motivo dos CP ainda serem uma prática comum na AB, uma vez que os usuários que necessitam dele também estão no território.
Conhecer o Paulo e a Alice nos deram algumas pistas, ajudou a processar e entender uma pequena ponta desse iceberg que é o cuidado frente a finitude da vida e ainda está submerso no mar prescritivo, hegemônico, do cuidado em saúde.
Uma das pistas emergida a despeito do encontro com os usuários que integraram essa cartografia, foi o quanto o encontro entre trabalhadores e usuários é atravessado pelas subjetividades, fazendo com que o trabalhador faça algumas escolhas, intencionais ou não, entre aquilo que eu quero fazer, aquele que eu quero cuidar, que é confortável, recompensador, e aquele outro que não é meu desejo, que não é meu “papel”, que está fora do meu nível de atenção e que me desafia a travar outras batalhas que talvez eu escolha não enfrentar naquele dado momento (por diversos motivos).
A rede quando é hierarquizada, desconectada entre seus pontos, produz desconforto e insegurança no usuário e institui barreiras fronteiriças, onde até certo ponto eu (serviços de saúde) me responsabilizo e a partir daqui não é mais da minha alçada, logo, “não podemos fazer nada”, quando na verdade ainda há muito o que se fazer.
Assim, foi possível observar que o cuidado paliativo está presente, mesmo que não intencionalmente no território e de alguma forma alguns usuários entraram na linha de produção do cuidado da AB. Outros tiveram suporte familiar, especialmente no luto e apesar de algumas ofertas de suporte da Unidade Básica de Saúde, alguns usuários não foram alcançados pelo cuidado da equipe. Nos encontros com os usuários, foi possível observar o quão reconfortante é, a segurança que traz para a família e para o usuário, ter sua rede de cuidados organizada, saber quando e para onde vai se algo acontecer.