No âmbito das práticas voltadas à saúde mental adolescente, faz-se necessário (re)embarcar na travessia cujo destino nos parecia incerto. As adolescências, que são múltiplas devido a interseccionalidade de fatores que as marcam, como os atravessamentos de classe, de gênero e de raça, têm em sua saúde mental reflexos do modo de organização neoliberal. Nessa perspectiva, a presente escrita tem como objetivo apresentar reflexões sobre o tema saúde mental na adolescência contemporânea, a partir da atuação em estágio curricular de uma graduanda do curso de Psicologia. A prática foi realizada em escolas públicas estaduais de abrangência da 6ª Coordenadoria Regional de Educação (6ª CRE) do Estado do Rio Grande do Sul (RS), através do Laboratório de Práticas Sociais (LAPS) da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). É importante destacar que as discussões e reflexões foram instigadas pelo Grupo da Pesquisa sobre Adolescências (GRUPAD/UNISC), que trabalha há 14 anos com promoção e educação em saúde, na região do Vale do Rio Pardo (RS). A partir do campo da Psicologia Escolar Educacional, as ações de estágio ocorreram em 14 escolas, onde foram realizados trabalhos de escuta, acolhimento e encaminhamentos para outros serviços. Salienta-se que, apesar da efetivação da Lei 13.935 em 2019, que determina a obrigatoriedade de serviços da Psicologia nas escolas públicas, a presença de profissional da área neste espaço ainda é uma realidade distante, o que prenunciou o desafio dessa prática de estágio. Dessa forma, foram desenvolvidas atividades que mobilizassem o coletivo, como rodas de conversa, dinâmicas de grupo e apoio às equipes diretivas. Ainda, a articulação com a rede de saúde e de assistência social dos territórios, foram pontos de apoio essenciais dessa prática. As vivências foram registradas na ferramenta de diário de campo e, posteriormente, discutidas em orientação de estágio e junto ao grupo da pesquisa. Com a larga incursão nas escolas, observou-se a existência de um cenário geral, dentro do contexto da educação, de desinteresse e desmotivação, por parte dos adolescentes, em permanecer estudando, fato que se evidencia no grande número de faltas e atrasos dos discentes. Esses sintomas parecem se acentuar conforme há o avanço na escolaridade, ou seja, quanto maior o tempo de permanência na escola, mais desmotivados mostram-se. Nesse ínterim, aumentam os índices de abandono escolar e os números de FICAI (Ficha de Comunicação de Aluno Infrequente) são preocupantes. Tais problemáticas são percebidas pela equipe escolar, que destacou a autolesão, as crises de ansiedade, o uso e abuso de substâncias psicoativas e a depressão como fatores que têm mobilizado e preocupado tanto a equipe, quanto a comunidade escolar. Em conversas com professores, observou-se queixas em relação à apatia, a falta de participação e as dificuldades de aprendizagens dos escolares. Esse fenômeno é justificado com base na percepção de que os alunos não se identificam com os conteúdos da base curricular. O Novo Ensino Médio parece ter intensificado a problemática. Segundo os professores, essa mudança aumentou a carga horária em sala de aula e introduziu disciplinas que não são de interesse desse público. Durante as atividades práticas do estágio, essas queixas também estavam presentes no discurso dos adolescentes. Nas rodas de conversa, esses mencionaram o desânimo permanente, a autolesão como saída para a dor emocional e diversas questões sobre como controlar a ansiedade. Em alguns casos, o diálogo com os serviços especializados, sejam de saúde ou de assistência social, foram fundamentais para o amparo e o acolhimento de situações de sofrimento mais agudas e que escapavam do contexto escolar, como as determinadas pelas vulnerabilidades sociais. Sabe-se que as adolescências estão submetidas a essas mudanças recentes nos currículos escolares, bem como a uma inserção prolongada e incessante nas redes sociais. Essa presença online, que configura um cenário de pressões estéticas e comportamentais, faz surgir vivências de novas dinâmicas de relacionamento entre esses jovens. Desse modo, tem se apresentado na escola, cada vez mais cedo, reflexos de um cenário que é geral, que tem indicado uma gestão do sofrimento psíquico. Há um incentivo exacerbado à individualização, à competitividade, uma autocobrança por rendimento, performance e produtividade, que culpabiliza os sujeitos e desconsidera contextos, como a precarização da educação, fomentada por um modelo neoliberal de ensino. Assim, essa subjetividade centrada na constituição de um sujeito neoliberal tem recaído sobre as adolescências e acentuado sintomas e formas do corpo sofrer. Além disso, foi possível observar que os escolares demonstram uma incompreensão sobre os próprios sentimentos, uma dificuldade em diferenciar aquilo que é da natureza da vida e da vida em coletividade, como as tristezas e angústias decorrentes de experiências que frustram e provocam incômodo, daquilo que de fato possa ser patológico. Esse cenário é reproduzido e evidenciado por sintomas que são sociais, como apontam as obras “Patologias do social: Arqueologias do sofrimento psíquico” e “Neoliberalismo como Gestão do Sofrimento Psíquico”, ambas de Christian Dunker, Nelson da Silva Junior e Vladimir Pinheiro-Safatle. Esses autores problematizam uma valorização e busca por um estado de felicidade permanente, indicando que há uma moral que busca regular os modos como vamos lidando com expectativas e frustrações. A manifestação desses sintomas é retrato de um discurso neoliberal, que produz a necessidade de uma produção incessante e extenuante. Esse discurso tem preponderado nas adolescências, influenciando a constituição de subjetividades, o que se mostrou presente nas escolas. A pergunta “Você toma remédio para saúde mental?”, feita por um estudante, nos provoca a reflexão sobre como estes têm compreendido a sua saúde, mas também pode sinalizar a relação entre sofrimento psíquico e a medicalização da vida, efeitos desse modo de organização social. Nesse sentido, as adolescências precisam ser refletidas para além de sua compreensão dentro de um ciclo vital do desenvolvimento psicofisiológico e os sofrimentos e o mal-estar que as envolvem, não podem ser compreendidos apenas no escopo médico-psiquiátrico. Como observado, suas subjetivações são processos fortemente determinados pela lógica de mercado, na qual a produção constante e uma autocobrança quanto ao rendimento são imperativos. Nessa esteira, as intervenções e observações suscitadas pela prática de estágio contribuíram para pensar as adolescências contemporâneas e seus atravessamentos. Ainda, revelou a necessidade de reflexões acerca dos efeitos do neoliberalismo, pois constitui um modo particular de produção de sofrimento e de medicalização da vida. Por fim, a promoção de bem-estar e de saúde nesse contexto é desafiadora, ainda mais se considerarmos a ausência de profissionais da Psicologia Escolar. Contudo, a escola, enquanto espaço coletivo e de potencial transformador, fornece pistas que podem corroborar para mitigar as problemáticas destacadas. O incentivo para a construção de um pensamento crítico, que vise reafirmar o papel do contexto social e histórico nas formas de sofrimento, mas também de bem-viver, parece indicar um caminho para a promoção de autonomia dos adolescentes. Assim como a conscientização acerca da saúde mental e o estímulo às vivências coletivas podem ser fatores essenciais para reconduzir às adolescências a um destino menos adoecedor, mais produtor de sentidos e de vidas mais dignificadas.