Em 2023, segundo o Ministério dos Direitos Humanos (Diagnóstico da População de Rua), o Cadastro Único revelou que 236.400 pessoas se encontravam em situação de rua, equivalendo a 1 em cada 1.000, vivendo nessa condição. Ainda de acordo com o documento, entre os dez municípios com maior número de população em situação de rua (PSR), destacam-se São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Salvador, Fortaleza, Curitiba, Porto Alegre, Campinas e Florianópolis, sendo essa população predominantemente do sexo masculino (87%) e não brancas (68%, sendo 51% pardas;17% pretas; 0,2 % indígenas). Entre os principais motivos apontados para a situação de rua destacam-se os problemas familiares (44%), desemprego (39%) e alcoolismo e/ou uso de drogas (29%). Especificamente com relação à população negra, predominante no Brasil (54%), o risco de suicídio aumenta (45%) entre jovens negros do sexo masculino, de idades entre 10 e 29 anos, quando comparados a jovens brancos da mesma faixa etária. Isso relaciona-se ao sofrimento psíquico desses sujeitos, causado pelo racismo estrutural, reforçado pelo “mito da democracia racial”, e que contribui para a negação de práticas racistas. Com a pandemia da covid-19 e o período subsequente, o cenário se encrudesceu para essa população, que migra para os serviços de saúde pública, em particular os de saúde mental, sob diversas condições, reforçando a necessária discussão acerca dos efeitos do racismo, tornando-a presença marcante nos equipamentos de saúde mental do município de Belém (PA). O objeto do presente trabalho é apresentar a “CASA RUA enquanto um dos serviços da rede de atenção especializada do município de Belém (PA), bem como a experiência do primeiro autor como “Tri-Pulante”, que também habita a praça como território de existência de uma PSR. A CASA RUA é uma clínica de especialidades, voltada à assistência à saúde da PSR, vivendo ou não sob demanda judicial e à população indígena e refugiada. Constituída a partir dos princípios dispostos em sua política nacional, em articulação com a Rede de Atenção Psicossocial (RAS) e Rede de Assistência Psicossocial (RAPS) do município, congrega serviços e parcerias intersetoriais para realizar a atenção integral à saúde dessas populações. Situa-se na média complexidade (Serviços Especializados) da rede de serviços e seu projeto vem sendo reestruturado pensando-se na nova organização da rede de Atenção Primária à Saúde, de modo a ser mais articulada e próxima possível a um modelo poliárquico. Com a entrada de novos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) nas equipes, por meio do projeto da APS do Futuro e integrado pelo Programa “Família Mais Saudável”, da secretaria municipal de saúde, a reestruturação do serviço visa repensar a organização de atendimento da CASA RUA, dialogando com outros pontos da rede já existentes, com a assistência voltada à PSR atendida pelo serviço, o que também envolve novas condições de infraestrutura e de trabalho possíveis para melhoria do atendimento prestado. A estrutura da referida rede inclui os próprios serviços da CASA RUA, bem como a ESF Ver-O-Peso e o CnaR Ver-O-Peso, matriciando alguns serviços em conjunto com a atividade dos ACS para desenvolver o desafogamento e possibilidade de maior abrangência de serviços no espaço da CASA Especializada. A partir de práticas de ateliês e de oficinas profissionalizantes, pauta o cuidado em liberdade, com respeito à pessoa, às famílias e às comunidades em situação de rua. Tem ofertado uma série de serviços e atividades àquela população, do acolhimento ao acompanhamento longitudinal do sujeito. Parte dessas ofertas têm sido oficinas percussivas, um dispositivo de cuidado à PSR e facilitadas por um mestre em percussão, que faz a gira girar diretamente em uma praça localizada na região do centro histórico e comercial da cidade. Como “Tri-Pulantes”, um Psicólogo (GuiPernalta), um Enfermeiro (EnferMágico) e um Arte Educador (Cajun) inserem nos territórios de cuidado uma kombi (“Magikombi”) com caracterização mambembe, abrindo possibilidades de arte inventiva. Na perspectiva de pesquisador in-mundo, um deles, psicólogo, pernalta e brincante circense em formação, emaranha-se e mistura-se; se deixa afetar pelo processo de pesquisa, dilui o objeto, pois se contamina com ele para se sujar de mundos existenciais dos sujeitos em sofrimento mental. Nesse cenário, palco para a cartografia “Tri-Pulante”, se empreendem novos agenciamentos desejantes a partir das ofertas nos diferentes territórios existenciais, o que aponta para uma clínica com outras possibilidades de relações que não as moralizantes e manicomiais, oferecidas aos problemas surgidos de uma vida vivida sob diversos modos de existir e como garantia de um projeto terapêutico singular que se pauta no cuidado em liberdade. “Tri-Pular” dispositivos que propõem um cuidado em liberdade têm aberto espaço para a experiência de produzir encontros de descolonização, pois abre-se possibilidades dos sujeitos narrarem suas próprias histórias através da arte, na tentativa de validação e de legitimação da reinvenção de si, reconhecendo seus corpos-território, corpos-mapa, abrindo caminhos-frestas como base essencial do exercício da clínica peripatética(?). Esse é o devir cartógrafo que tem o rizoma como um mapa e não um decalque; para trazer à cena o território existencial dos usuários, lanço um olhar vibrátil e (des)foco das universalidades que prescrevem o viver em situação de rua. Também abre espaço para a experiência de produzir um saber interessado, implicado na transformação de práticas e saberes que, normalmente, prescrevem formas universais de se andar na vida. Os sujeitos e suas vidas que giram a gira na praça do coletivo, se reconhecem enquanto grupo e enquanto indivíduos, que trilham caminhos na construção de suas vidas para além dos instituídos, até pela própria rede de cuidado, desafiando-nos a andar por outros territórios. Como não se conhece o caminho a ser percorrido, opera-se sempre com a possibilidade de vazar entre as frestas rumo ao solo, às fundações. Acessam memórias afetivas de uma vida que vai encontrando lugar sob(re) uma pele; vamos apostando no campo do acesso, do (re)encontro para descolonização dos corpos, anestesiados pelo tipo de relações com eles estabelecidas. Portanto, nesse cenário, se empreende novos agenciamentos desejantes a partir das ofertas nos diferentes territórios existenciais, o que aponta para uma clínica com outras possibilidades de relações que não as moralizantes e manicomiais, oferecidas aos problemas surgidos de uma vida vivida na rua.