Apresentação:
A segurança do profissional de saúde origina-se de princípios provenientes da cultura de segurança na qual todos os trabalhadores, incluindo profissionais envolvidos no cuidado e gestores, assumem responsabilidade pela sua própria segurança, pela segurança de seus colegas, pacientes e familiares.
A Atenção Primária à Saúde (APS) é a porta principal de acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS) e ordenadora da Rede de Atenção à Saúde. Possui especial destaque para o planejamento e implementação de ações que visam atenção integral centrada no usuário/família e acesso universal com população adscrita e acompanhada, com práticas clínicas, de prevenção de riscos e agravos e promoção da saúde.
Com a alta transmissibilidade do SARS-CoV-2, a APS atuou na implementação de ações de controle da pandemia com reorganização de fluxos de atendimento para pessoas infectadas, vigilância e monitoramento de casos e oferta de atendimento resolutivo com referência de casos graves a outros níveis de atenção. Para tal, a rotina e a corresponsabilidade profissional foram intensas e as condições de trabalho afetadas pela elevada demanda, jornada exaustiva e precárias condições de infraestrutura para adaptação do ambiente e controle da transmissibilidade. Estratégias de cuidado foram transformadas ao longo da pandemia devido a mudanças frequentes de protocolos e impacto no processo de trabalho.
Com vias a garantir a segurança, o profissional de saúde necessitou cuidar de si, frente à elevada exposição, para cuidar do outro.
Este estudo teve por objetivo compreender a Segurança do Profissional de Saúde no enfrentamento da pandemia de COVID-19 no cotidiano da APS e nos serviços de referência, experiências no Brasil e no Chile.
Desenvolvimento do trabalho:
Adotou-se a Teoria Fundamentada nos Dados (TFD) como método e o Interacionismo Simbólico como referencial teórico. A análise na TFD classifica as etapas de codificação em quatro fases: aberta, axial, seletiva e para o processo.
A TFD permite que uma teoria seja construída à base da realidade pesquisada diante de uma imersão profunda para aquisição de dados densos. O Interacionismo Simbólico busca interpretar os significados resultantes das interações sociais estabelecidas, para entender a natureza dessas interações e como os significados/conceitos são (re)construídos individualmente e coletivamente.
As fontes de evidências são a entrevista aberta individual e memorandos. O cenário do estudo compõe os serviços da APS e os de referência para a APS em Divinópolis, Minas Gerais, Brasil, e em Concépcion, Província de Bío-bío, Chile. Os participantes são profissionais de saúde que atuaram no enfrentamento da pandemia de COVID-19 e tiveram o diagnóstico de COVID-19, durante o período pandêmico, e afastaram de suas atividades laborais. Os informantes-chave fazem parte deste estudo, quando mencionados pelos participantes da pesquisa, como possibilidade de fornecer uma visão ampla sobre o objeto em estudo e aprofundar os conceitos/significados emergidos.
Resultados parciais:
Participaram do estudo, até o momento, 26 profissionais de saúde e três informantes-chave no Brasil e a coleta de dados no Chile iniciou-se em maio/2024. Conforme premissa da TFD a etapa da codificação aberta é concomitante à coleta, entrevista a entrevista, e já foram originados 32 códigos in vivo e uma propriedade.
Dos participantes, 19 são profissionais da equipe Estratégia Saúde da Família (ESF), sete da equipe e-Multi e três são informantes-chave. A média de tempo de atuação na APS é de 5,6 anos e apenas 14% possuem especialização em Saúde da Família ou Saúde Coletiva. Acerca da COVID-19, 45% dos participantes afirmam ter recebido treinamento ou capacitação e, em média, foram realizadas duas capacitações. Todos os participantes deste estudo do Brasil receberam a vacina contra a COVID-19, a maioria com três doses da vacina.
Os significados expressos nos códigos in vivo permitiram identificar que os profissionais de saúde vivenciaram experiências únicas no cotidiano do serviço e partilharam medo, anseios, angústias e inseguranças. O medo do contágio, transmitir para seus familiares e a fragilidade física e mental os levaram a elevado estresse. A APS, enquanto porta de entrada do serviço e ordenadora da rede de atenção, necessitou de reorganização e a alteração nos fluxos de atendimento exigiu também a mudança de função de alguns profissionais, perante uma elevada demanda e sobrecarga de trabalho. Houve intensificação de medidas de segurança com dificuldades no início da pandemia, pela escassez de equipamentos de proteção individual com melhoria do seu acesso na progressão da pandemia. Além disso, o olhar para a equidade no atendimento à população foi primordial, principalmente perante as desigualdades sociais.
A saúde não parou e faltou descanso para os profissionais que destacaram a falta de apoio emocional, de treinamento em alguns serviços, de reconhecimento e valorização. Ressaltam que não é foco da gestão a prioridade da segurança do profissional de saúde e que uma gestão participativa é essencial para o enfrentamento de crises e melhor preparo para outras condições pandêmicas.
A estrutura física das unidades da ESF/APS no Brasil nem sempre é favorável à segurança dos profissionais de saúde, uma vez que parte dessas unidades são casas adaptadas para o atendimento, o que dificultou a reorganização do fluxo. A disponibilidade de EPI foi um fator ambíguo, onde os profissionais em cuidado direto às pessoas infectadas relatam alta disponibilidade, enquanto os demais profissionais de saúde, mesmo atuando no contexto da pandemia, relataram escassez e fracionamento.
O acesso à informação da população, acerca da alta transmissibilidade do SARS-CoV-2 e medidas de proteção, se fez atribuição dos profissionais da APS, com vistas ao excesso de fake news. A educação permanente e a experiência profissional foram fatores importantes para a atuação segura e construção do conhecimento sobre a COVID-19.
A vacinação é destaque positivo quanto ao sentimento de segurança para atuação profissional e mitigar parte dos anseios vividos. Entretanto, há relatos de negligência da população em medidas de segurança e distanciamento com o avanço da vacinação e diminuição de casos.
Uma das potencialidades da segurança do profissional de saúde foi o trabalho em equipe interdisciplinar, como fonte de apoio e troca de experiências e conhecimentos para boas práticas e atenção equânime em momentos críticos da pandemia.
A experiência no cotidiano pandêmico foi desgastante, causou impactos físico, mental e social, com resultados que indicam maior desgaste entre os profissionais da Enfermagem. Porém, mesmo diante dos mais diversos fatores que podem ocasionar (in)segurança, os profissionais de saúde relataram amor e gosto pelo que fazem, queriam estar presentes na linha de frente, mesmo cercados pelo medo e angústia.
Os profissionais de saúde destacam que a pandemia de COVID-19 deixou como legado o cuidado intensificado, o uso de medidas de segurança com melhorias nos hábitos de higienização e, principalmente, reflexões acerca da fragilidade humana e valorização da vida.
Considerações finais:
A segurança do profissional de saúde é constituída de múltiplos fatores, perante as dimensões pessoal/profissional em atuação com competências e habilidades; da infraestrutura considerando principalmente os recursos humanos no enfrentamento da crise sanitária e sua proteção; na eficácia da cultura de segurança organizacional/institucional e do apoio de uma gestão que deve ser participativa. As questões de ambiente e ambiência devem ser consideradas, as relações interpessoais contribuem para a segurança ou insegurança dos profissionais. Favorecer a segurança do profissional de saúde é garantir uma atuação prática pautada na ética, no respeito e dignidade humana e efetiva segurança do paciente, porque ambas são interdependentes, para um trabalho in vivo cuidador/ser cuidado.