Apresentação: sabe-se que o movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira proporcionou o redirecionamento do cuidado assistencial em saúde mental para, prioritariamente, serviços de base territorial e comunitária, os quais constituem a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Dividida em diferentes níveis de complexidade de atenção (primária, especializada, urgências e emergências, residencial, hospitalar e reabilitação), a RAPS estabelece um fluxo livre entre os serviços e a população. Oferta maior disponibilidade de acesso e um cuidado integral e equânime às pessoas em sofrimento mental e em uso abusivo e/ou prejudicial de substâncias psicoativas. Desse modo, o território potencializa as ações de cuidado aos usuários, além de corroborar com a transição do modelo hospitalocêntrico de cuidado para o modelo de atenção psicossocial. Nesse cenário, a internação psiquiátrica se configura como um recurso terapêutico excepcional, recomendado somente quando forem esgotadas todas as outras possibilidades pautadas no cuidado territorial e comunitário. Assim, a internação psiquiátrica deve ocorrer somente quando o usuário apresentar quadro de crise de saúde mental, que coloque a si ou outras pessoas em risco. Compreende-se que o cuidado ofertado durante a internação deve ser humanizado e sensível, de modo a estimular o autocuidado, o vínculo familiar e social, visando fortalecer as relações do indivíduo e sua alta hospitalar. Diante do exposto, torna-se necessário ouvir os profissionais atuantes nesses serviços para compreender como ocorre o cuidado em saúde mental dos usuários em sofrimento. Sendo assim, tem-se como objetivo conhecer a percepção dos profissionais da atenção hospitalar sobre o cuidado em saúde mental. Método: trata-se de um estudo qualitativo do tipo descritivo e exploratório, no qual se utilizou da análise de conteúdo temática de Minayo. Foi realizado em uma Unidade de Saúde Mental (USM), no contexto hospitalar, de um município da região central do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Os participantes da pesquisa foram profissionais da saúde, atuantes na USM. Assim, contou com a participação de 23 profissionais, que se distribuem nas seguintes profissões: nove técnicos de enfermagem; cinco enfermeiros; três médicos; três psicólogos; dois assistentes sociais; e um recreacionista. Foram adotados como critérios de inclusão dos profissionais: aqueles atuantes na USM durante o período da coleta de dados. Já como critérios de exclusão: aqueles que estivessem afastados do trabalho no período da coleta de dados por atestados médicos, licenças ou por período de férias. A produção de dados foi realizada por meio de entrevista semiestruturada, realizada de forma individual, em sala reservada do serviço. Ocorreu no período de agosto a setembro de 2021. Foram realizadas pela pesquisadora e gravadas, com a autorização prévia dos participantes, por meio de um gravador de áudio. Duraram, em média, 11 minutos e 5 segundos, não havendo necessidade de repeti-las. Posteriormente, foram transcritas na íntegra. Foram adotados os preceitos éticos para a realização de pesquisas com seres humanos, estabelecidos pela Resolução nº 466/12. Contou com a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa, sob o CAAE nº 23081.050973/2021-75. Resultados: após a análise das entrevistas, foram formadas duas categorias: cuidado em rede; e desmonte das políticas públicas de saúde mental. A partir da categoria “cuidado em rede”, foi possível perceber que alguns profissionais da USM reconhecem o hospital como um serviço pertencente a RAPS, o que amplia o campo de atuação profissional e as intervenções em saúde. Referiram a necessidade de trabalhar de forma intersetorial tanto durante a internação do usuário quanto no pós-alta hospitalar, pois permite a aproximação com o território do indivíduo, o seu processo saúde-doença e facilita a continuidade do tratamento/cuidado. Ademais, segundo os profissionais, o cuidado em rede promove o cuidado integrado em saúde, mais precisamente em saúde mental. Tal fato viabiliza a garantia da qualidade, da efetividade e da equidade do cuidado em saúde as pessoas em sofrimento mental. Nesse contexto, a Atenção Primária de Saúde (APS) foi citada pelos profissionais como um serviço essencial para desenvolver essas ações e, assim, garantir o direito a saúde a população. A APS, por estar conectada aos territórios existenciais dos usuários, possui a função de desenvolver o cuidado longitudinal e, assim, facilitar a continuidade do cuidado ofertado ao indivíduo, família e/ou coletivos. Sendo assim, a atuação da APS, assim como de outros serviços, segundo os profissionais, pode evitar a reincidência dos usuários em USMs ou, até mesmo, em hospitais psiquiátricos, evitando o fenômeno da “porta-giratória”. Ainda conforme os profissionais, por meio de estratégias de cuidado compartilhadas com a APS, evita-se investimentos hospitalares onerosos. Contudo, foi possível identificar que alguns profissionais perceberam a fragilidade da RAPS e, com isso, o desmonte das políticas públicas de saúde mental. Referiram observar a falta de infraestrutura adequada nos serviços, o que prejudica a prestação da assistência dos profissionais aos usuários. Além disso, a falta de serviços tais como Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e os Centros de Convivência também foram citados como fragilidade da RAPS e, por isso, um grande desafio para a efetividade do cuidado. Vale dizer que as políticas de saúde mental sofreram importantes retrocessos a partir do ano de 2017 e, desde o ano de 2023, tem-se investido para a sua (re)estruturação. Junto ao desmonte, encontra-se o agravante da falta de recursos humanos para trabalhar na atenção psicossocial e os escassos investimentos em ações de educação permanente e/ou continuada dos profissionais já atuantes na RAPS. Ainda, observou-se que os profissionais associam a fragilidade do conhecimento em saúde mental com o estigma que muitos deles carregam consigo para com as pessoas em sofrimento mental, prejudicando ainda mais a prestação de cuidado a essa população. Considerações finais: a presente pesquisa possibilitou conhecer a percepção dos profissionais da atenção hospitalar sobre o cuidado em saúde mental. Diante disso, pode-se dizer que a percepção dos profissionais da atenção hospitalar acerca do cuidado em saúde mental vai ao encontro dos preceitos da Reforma Psiquiátrica brasileira, principalmente no que tange a promoção de um cuidado integral e territorial das pessoas em sofrimento mental. Todavia, foi possível observar que esses profissionais enfrentam importantes desafios para descentralizar o cuidado da atenção hospitalar e garantir a continuidade do cuidado em serviços de base comunitária e evitar a reincidência dos usuários em internações psiquiátricas. Visto isso, aponta-se a crescente necessidade, aos entes federativos brasileiros, de investimentos em políticas públicas de fortalecimento e expansão das estratégias de base territorial e comunitária de cuidado, bem como de ações de educação permanente e continuada em saúde aos profissionais atuantes no serviço público. Compreende-se que desse modo, será possível qualificar o cuidado em saúde, principalmente de saúde mental.