A arte é um potente dispositivo-analisador dos processos de subjetivação e produção de subjetividade no mundo contemporâneo. Discutir os conceitos relacionados com os dispositivos que nos faz pensar a relação entre arte marginal e saúde mental mediada pelos corpos que ocupam os espaços públicos da cidade é o objetivo deste estudo teórico. Trata-se de uma discussão cujas ferramentas-conceitos remetem a uma aposta na relação de criação e na potência dos encontros, dos quais emergem e se dissipam, maquinicamente, dispositivos-analisadores: corpos sem órgãos, corpos utópicos reivindicando espaços outros, o que Michel Foucault chama de heterotopias. O trabalho de Lygia Clark com os objetos relacionais é inspiração para que possamos mapear, reconhecer e nomear os objetos relacionas da arte marginal, esta que possibilita uma relação fronteiriça entre a clínica e esses corpos. O corpo experimenta outros espaços como promoção de saúde mental, e segue uma ética do cuidado de si e práticas de reinvenção de mundos, em um embate permanente ao sistema colonial capitalístico. Embate esse que os corpos fazem sem reivindicar ação militante como estabelecimento de suas atividades – mesmo assim criam ação, e para Félix Guattari militar é agir, isso já diz muito. Os corpos são mapas afetivos dos objetos relacionais que eles mesmos criam, estabelecendo um saber sobre si e sobre o cuidado em saúde mental. A arte marginal abre caminho para produção de subjetividade que escapa de uma relação vigente do saber poder clínico, e encontra na rua, nas praças, nos espaços abertos e públicos, a sua expressão e manifestação contrária. Fazer arte marginal na fronteira potencializa linhas de fuga ao sofrimento psíquico e à medicalização da existência de modo que a produção de cuidado de si possibilita outras práticas de viver.
O campo de discussão teórica deste estudo está relacionado com ferramentas-conceitos da esquizoanálise em interface com conceitos foucaultianos. Ressaltamos que este ensaio teórico surge das transformações do olhar dos cartógrafos a partir da composição do campo de uma pesquisa-intervenção que envolve a arte marginal e a produção de vida nas tramas urbanas de uma cidade. Portanto, o trabalho se banha, epistemologicamente, a partir dos encontros para dar nome aos dispositivos, dentre os quais destacam-se o corpo utópico e as heterotopias. Os corpos utópicos tecem seu território de existência com as linhas de forças da vida que são expressões da arte marginal nas tramas urbanas da cidade. A partir dos encontros com a cidade subjetiva fazemos da escrita corpo-sem-órgãos e a concebemos como um dos elementos do dispositivo corpo utópico, uma outra criação aberta a possibilidade de evocar o outro (leitor/leitora) para uma nova relação entre saúde mental e cidade que pedirá passagem para surgir e insurgir novos caminhos.
Na esquizoanálise, os caminhos do trabalho de reflexão teórico-metodológica se abrem a partir da cartografia, que em si não se torna um método como um fim, e sim um modo de fazer pesquisa-intervenção a partir do acompanhamento atento dos processos de subjetivação segmentados e singulares. Quanto à cartografia dos processos de subjetivação em arte e saúde mental que deu origem a este ensaio teórico, ao compô-la, os cartógrafos não entram nas tramas urbanas somente para mapear as produções da arte como analisadores da produção de subjetividades. Entram também para acompanhar os movimentos micropolíticos do desejo que a arte marginal engendra nos processos de subjetivação dos corpos que dançam, pintam, se vestem e evocam nos outros possibilidades éticas, estéticas e políticas. Os objetos relacionas da arte marginal e do corpo em cena na cidade evocam nos cartógrafos a discussão em torno das concepções de corpo-sem-órgãos e corpo utópico que ora fazemos.
Corpos marginalizam o saber poder, recriam e produzem a partir da arte outros instrumentos, como hackers, infiltrando-se a luz do dia nos espaços, independente dos sistemas de vigilância e dos riscos de punição. Os corpos se reapropriam dos espaços das estruturas de poder sobre a vida (biopoder) que produzem essa atmosfera do real como um possível normal, através do discurso médico, que reduz o corpo ao que Foucault denominou “realidade biopolítica”, mas corpos utópicos mostram potência de vida.
A arte marginal se auto reivindica produtora de saúde mental, expressando fé na vida, culto ao sagrado e profanação como cuidado de si. Os objetos relacionais da arte nomeiam e possibilitam que outros possam nomear, a partir tanto de encontros tristes com a perda de encantamento pela vida como de encontros felizes. Os corpos utópicos da arte marginal se apropriam dos espaços heterotópicos e produzem para si corpos-sem-órgãos, mostrando outras possibilidades para além das sujeições que as forças capitalísticas produzem sobre nós.
A coexistência de processos de subjetivação que são expressão de corpos capturados e sujeitados – produtos prontos para o consumo, que servem ao lucro ou criam despesas, de acordo com a lógica do sistema neoliberal – e expressão de corpos que performam linhas de fuga que escapam a essa lógica, e o que escapa são modos ético-estético-político do ordinário, de uma cultura ordinária. Que encontra espaço para o contraditório, pois é dele que emerge outras relações que possam produzir potência de vida. Esse ordinário é o que se cartógrafa, é com ele que se aprende a reviver e ao reinventar um espaço outro ao qual o corpo possa se sentir pertencente.
Estamos cooptados a criarmos um muro entre nós e a margem do que é público, tornando esses espaços vulnerabilizados a sujeição e produção de violência. E são nesses espaços, que a cultura ordinária, que corpos utópicos nos mostram o cheiro da cidade, a cor da cidade, o tato da cidade. Os objetos relacionais da arte do corpo em cena afrontam os modos de produção de vida capitalístico. É na ambiguidade, é na contradição, que esses corpos não se sujeitam a serem apenas um domínio de venda e lucro, não sujeitando que a sua criação seja exposta como arte pronta para o consumo, como objeto de desejo, dentro do sistema neoliberal que é pura expressão de uma produção de subjetividade colonial capitalística. Os objetos relacionais da arte marginal não estão sujeitados a entrar em uma lógica de consumo, e sim, tratam de fazer parte da lógica de criação e afetação, expressão de uma ética do cuidado de si e estética da coexistência.
Os enunciados que expressam os processos de subjetivação e produção de subjetividade de artistas que colocam o corpo em cena nas tramas urbanas, mostram que ser marginal e subversivo fazendo arte, se produz outros processos de cuidado em saúde mental para além das instituições detentoras do cuidado, sem negar a importância dos dispositivos da rede de atenção psicossocial. Os processos cartografados expõem corpo utópico e corpo-sem-órgãos como dispositivos analisadores de uma produção de subjetividade em movimentos da vida no contemporâneo. Os processos de subjetivação denunciam e anunciam que heterotopias marginalizadas e postas à margem da violência podem promover uma relação ético-estética e política entre cidade e saúde mental. Importante frisar que esses movimentos têm a arte marginal subvertendo à lógica colonialismo capitalístico, portanto também como um dispositivo possível de biopotência. A relação vibrátil com o outro nos dá a sensação que corpos estejam produzindo uma desterritorialização dos agenciamentos que incidem sobre sua subjetividade e saúde mental. Isso mostra que podemos criar linhas de fuga na distopia capitalística que estamos sujeitados no contemporâneo.