Introdução:
A Atenção Primária à Saúde (APS) deveria ser a principal porta de entrada dos Sistemas de Saúde, sendo a principal Sistema Único de Saúde Brasileiro desde a implantação do Programa Saúde da Família (1994) e depois Estratégia Saúde da Família (2006). A APS também é caracterizada pelo cuidado de uma equipe interprofissional e com educação da equipe de forma constante e consistente, seja ela por educação permanente ou educação continuada. Com isso, é de fundamental importância que, para manter os princípios da APS ativos e de qualidade, que a equipe esteja sempre se adequando as realidades e necessidades do local.
Uma doença altamente prevalente, mas pouco diagnosticada é a Hanseníase. Ela é causada por uma micobactéria, de transmissão por gotículas e necessário longo período de contato entre uma pessoa infectada e uma saudável para sua transmissão. Sua característica principal é ser uma patologia dermato-neurológica, sendo assim, pode apresentar uma clínica variável, desde lesões bastante características a pessoas com alterações exclusivamente neurológicas. A evolução dela é lenta e insidiosa, e resulta em quadros de deformidades e mutilações ao longo dos anos. Assim, seu diagnóstico se torna imprescindível, visto que é prevalente, mutilador e transmissível.
O diagnóstico da hanseníase é, principalmente, semiológico, com a pessoa apresentando sintomas neurológicos (dor neuropática, formigamentos, perda de sensibilidade) e com achado de lesões dermatológicas características, além de uma história de contato com pessoas com a doença. Para os casos inconclusivos pode ser necessário ima investigação armada com bacioloscopia, biópsia de pele, biópsia de nervo periférico, eletroneuromiografia e avaliação sanguínea do Anti-PGL1. Contudo, essa é a minoria dos casos, sendo eles utilizados principalmente para quadros puramente neurológicos.
Com o diagnóstico realizado, é necessário fazer a notificação compulsória da doença, iniciar o tratamento, que varia de 6 meses a 1 ano a depender da classificação operacional da hanseniase (paucibacilar ou multibacilar). O tratamento requer uma dose por mês supervisionada e a restante domiciliar durante todo o período. Além de fazer o tratamento da pessoa acometida, todos os familiares e contactantes intradomiciliares devem ser avaliados para diagnóstico. Se negativo, é necessário fazer nova vacinação contra a BCG, pois há uma proteção cruzada entre as micobactérias.
Uma ferramenta de rastreio passível de ser aplicada por Agentes Comunitários de Saúde na APS foi desenvolvida e validada, conhecida como Questionário de Suspeição de Hanseníase (QSH). Ela é composta por quatorze perguntas sobre lesões dermatológicas e/ou sintomas neurológicos focais periféricos. Quando a pessoa tem respostas positivas, ela deverá ser avaliada por um profissional do nível superior treinado para o exame dermato-neirológico e excluir ou suspeitar de hanseníase. Assim, ele se torna uma ferramenta de grande valia na busca ativa de pessoas com possível lesão e transmissão desde que tenha uma equipe capacitada para sua aplicação e para avaliação dermato-neurológica.
Objetivo:
Realizar a capacitação de equipes de APS em um município de médio porte para o diagnóstico e manejo de hanseníase.
Metodologia:
No ano de 2017 foram capacitados agentes comunitários de saúde para a aplicação em larga escala do QHS. Todas as pessoas com ao menos 1 resposta positiva foram encaminhadas para o serviço de hansenologia do município. No dia da avaliação das pessoas, os médicos e enfermeiros da APS de referência fizeram a avaliação dermato-neurológica em conjunto com a equipe de hansenologia (matriciamento) e foram capacitados para diagnóstico e manejo terapêutico dos casos positivos. Até o momento, apenas uma região de saúde foi matriciada no município (ao todo são 5 regiões de saúde). O presente estudo avaliou o resultado do matriciamento através de uma comparação dos diagnósticos realizados nos anos de 2015 a 2017 (3 anos) e 2018 a 2020 (3 anos), tanto na APS quanto nos serviços de referência municipais. Para a análise foi utilizada estatística descritiva.
Resultados
Entre os anos de 2015-17 foram realizados 184 diagnósticos no município, sendo exclusivamente em serviços de ponto secundário (120 - 65%) e terciário (64 - 35%). Foram 53% do gênero masculino e 47% feminino. 117 casos foram diagnosticados por encaminhamento, 19 por demanda espontânea, 13 por exame coletivo e 34 por avaliação de contatos. Foram avaliados, em média, 89% dos contatos indicados na ficha de notificação compulsória. A forma clínica foi de 7,61% indeterminados, 7,61% tuberculóide, 61,41% dimorfo, 20,11 vishowiano e 3,26% não classificados.
Entre os anos de 2018-2020 foram realizados 263 diagnósticos (aumento de 42%), distribuídos em APS 106 diagnósticos (40% do total), consultório particular de dermatologista 29 diagnósticos (11%), ponto secundário 96 diagnósticos (36%), ponto terciário 32 diagnósticos (12%). Foram 54% homens e 46% de mulheres. Entre os pontos de atenção secundário e terciário, 94 por encaminhamento da APS. Ao todo, foram 77 de demanda espontânea, 24 de exames de coletivo, 65 de contactantes e 3 de outros modelos. A média de contatos avaliados foi de 90%, sendo os menores valores nas Unidade de Saúde da Família (83%). A forma clínica foi de 8,3% indeterminados, 3,42% tuberculóide, 65,4% dimorfo, 11,03% vishowiano e 10,61% não classificados, além de 1% sem dados.
Discussão:
A Hanseníase é uma doença prevalente no país, quase 120 mil novos diagnósticos entre 2017 e 2021. A maioria dos casos acomete os homens (55%). Sua distribuição é maior nas regiões norte, centro oeste e nordeste e menor no sul e sudeste. Contudo, como visto nos resultados apresentados, com a maior capacitação da equipe, desde a busca ativa com um instrumento qualificado para tal até a formação de equipes de APS, os números podem se modificar dentro do quadro nacional.
Em estudos anteriores e específicos para tal objetivo, o instrumento se mostrou eficaz para o "rastreio" da doença, buscando pessoas que não trariam tal demanda como uma necessidade de saúde e ampliando o diagnóstico clínico em ambiente de nível secundário. Nesse estudo, ele foi utilizado para auxiliar no matriciamento da equipe da APS.
Essa, após sua formação com especialistas focais foi capaz de elevar em 40% o número de novos casos no município, considerando a formação de apenas 1 região de saúde. As características clínicas são semelhantes (homens e classificação dimorfa). Houve pequena mudança nos outros pontos de atenção, com secundário com aumento de 5 casos (considerando consultório particular e ambulatórios) e terciário com redução de 32 casos (redução de 50%).
Considerando a pandemia de COVID-19 no ano de 2020, os números poderiam ser maiores que os encontrados em todos os níveis, contudo eles demonstraram que a APS é o principal ponto de diagnóstico e seguimento da hanseníase comparando os 2 períodos analisados. Entretanto, houve uma menor quantidade de avaliação de contatos na APS que é necessário melhores estudos para compreender o motivo.
Conclusão
A qualificação de profissionais da APS demonstrou ser uma importante ferramenta para diagnóstico e manejo de hansenáse, com considerável aumento dos diagnósticos, sem aumento do número de encaminhamentos (acesso e resolutividade). Entretanto a avaliação de contatos está aquém do esperado.