Este trabalho é fruto das reflexões realizadas entre profissionais que trabalham no contexto da saúde mental por ocasião do 8º Congresso Brasileiro de Saúde Mental (CBSM) em 2022, na perspectiva de debater, dialogar, construir propostas e trazer novas perspectivas que dialoguem com os diversos povos e populações para consolidar uma política de saúde mental que reafirme os princípios basilares do Sistema Único de Saúde (SUS), política de saúde ameaçada pelo governo de extrema-direita que a época fazia a gestão desse país. O CBSM se configurava atualmente como possibilidade de encontro e articulação, espaço coletivo, criativo, lírico, lúdico, poético e teórico, com possibilidades e capacidade de elaborarmos, a partir dos espaços democráticos, respostas concretas e inclusivas para a crise do pacto civilizatório instalado na democracia brasileira desde o golpe de 2016, sobretudo diante da política de morte de um governo fascista e que culminou no genocídio de mais de 710.000 pessoas pela COVID-19, com atenção para os povos e populações em situação de vulnerabilidade. Aliás, crise essa, configurada radicalmente diante de uma leitura analítica institucional, no qual encontramos apontamentos sobre a compreensão do conceito de necropolítica construída por Mbembe como formas de poder social, político e econômico em que são determinantes para morte como ferramentas de gestão, ou seja, de controle social e dos corpos, apresentando como dispositivo conceitual o avanço, ou atravessamento dos limites da biopolítica foucaultiana. Nessa esteira, parece que o debate sobre decolonialidade e saúde mental envolve um esforço, uma complexa dimensão para recolocar o debate sobre o conceito de saúde mental, a partir de uma construção do ideal sobre decolonialidade como elemento central na vida e na luta dos povos de matriz africana e da população negra na diáspora; a ancestralidade. Certamente, essa construção acontecerá, não sem passar por um dos fenômenos da colonialidade como forma de não existência entre os povos sob a perspectiva do racismo. Na verdade, esse já é um debate contido na decolonialidade, embora, não o colocamos como movimento evidente na composição da luta antimanicomial e no propósito da condição de saúde mental, sobretudo nas políticas públicas. Inicialmente é ponto essencial e necessário compreendermos que o racismo como princípio constitutivo da colonialidade estabelece uma linha divisória entre aqueles que têm o direito de viver e os que não o têm, quem é o universal e quem é o diferente, quem é humano e quem não é, quem tem direitos e quem não tem ou, até mesmo, quem pode nascer e quem pode morrer. Todo esse princípio colonizador é orquestrado pelo estado em todas as esferas da dimensão pública. O racismo também é um princípio organizador daqueles e daquelas que produzem o conhecimento e daqueles e daquelas que consomem e reproduzem o conhecimento acompanhado ainda pela ideia do patriarcado, de classe e da orientação sexual como forma do engendramento da necropolítica do estado os tornando invisibilizados e silenciados. Nessas condições, a decolonialidade é considerado como caminho de luta, resistência e desconstruções de padrões, conceitos e perspectivas impostos aos povos subalternizados durante a colonização, sendo também uma crítica direta à modernidade, ao capitalismo, ao racismo, ao machismo e a homofobia. Portanto, a concepção decolonial se coloca como uma alternativa para trazer o protagonismo e visibilidade aos povos subalternizados e oprimidos que durante muito tempo foram silenciados e invisibilizados. Um projeto de libertação social, político, cultural, econômico e psicológico que visa buscar o respeito e autonomia aos grupos e movimentos sociais, como o feminismo, o movimento negro, o movimento ecológico, o movimento LGBTQIAP+, e tantos outros movimentos que lutam pelo direito a vida. Para tanto, se a decolonialidade surge como uma proposta para enfrentar a colonialidade e o pensamento moderno, como incorporarmos ainda uma lógica moderna de Saúde Metal, se as populações de matriz africanas e povos originários não reconhece a mente, os espíritos, a alma e os ancestrais como um elemento destituído da condição de saúde? Com isso, diante dessa impossibilidade de definir, e até mesmo de constituir uma noção de saúde mental, retomo aqui a concepção de ancestralidade que atravessa a noção de saúde em tempos, sociedades, lugares, territórios e dimensão como uma cosmovisão a ser incorporada (como transe ou como posse) tomando o conceito de antropofagias trazido nesse congresso. Quem sabe até a ancestralidade como uma ponte que liga a decolonialidade a saúde mental. Como proposta, a ancestralidade como movimento decolonial de luta e resistência, mas também, uma condição de saúde como princípio de existência para os povos diaspórico e originários. A ancestralidade como termo, conceito e narrativa trazidas na atualidade para dialogar com os conhecimentos antropológicos, históricos, políticos e sociais é evocada para falar de entidades em um determinado lugar (África), ou até mesmo uma força, ou uma energia referenciada na luta do dia a dia da população negra e rogar pela nossa sobrevivência e existência em uma sociedade que cotidiana e insistentemente persiste tentando nos exterminar. Pois bem, é nessa esteira que esse elemento ancestral se coloca como força matriz de resistência, não apenas resistência, mas como uma condição cotidiana de uma experiência de vida para condição de saúde e como uma memória viva e presente na temporalidade habitual de nossas ações. A ancestralidade, inicialmente, é, portanto, o princípio que constitui o povo de santo e as religiões de matriz africana na diáspora. Arregimenta todos os princípios organizativos da vida e valores caros a todo o povo de santo na dinâmica civilizatória africana. Não se trata de uma relação genética, ou de parentesco consanguíneo, mas o principal elemento da cosmovisão africana na diáspora, muito menos às linhagens de povos africanos e seus descendentes. A ancestralidade nos parece um princípio regulador não apenas das práticas e representações do povo de santo, mas um elemento presente em cada ação realizada em nosso dia a dia como aspecto regente de todas as dimensões da natureza, para além da humana. Tributária da experiência tradicional africana, a ancestralidade converte-se em categoria analítica para interpretar as várias esferas da vida da população negra em seu cotidiano de existência. Retroalimentada pela tradição, ela é um signo que perpassa as manifestações culturais da população negra no Brasil, esparramando sua dinâmica para qualquer grupo racial que queira assumir os valores de culturas africanas. Desse modo, passa, assim, a configurar-se não apenas como uma epistemologia, mas como uma condição de luta, existência e (re)existência que permite engendrar estruturas sociais capazes de confrontar o modo único de organizar a vida e a produção no mundo moderno contrapondo as lógicas de exploração, controle, violência e encarceramento da vida.