Apresentação: Considerando a necessidade de formação de profissionais da saúde mais aptos ao trabalho em equipe para atuação no Sistema Único de Saúde (SUS), iniciativas de educação interprofissional (EIP) são essenciais no ensino superior. Dentre as metodologias educacionais utilizadas com o objetivo de promover interação e compartilhamento das decisões em saúde, que são pressupostos da EIP, destaca-se a simulação clínica. Essa abordagem permite criar experiências guiadas que reproduzem situações clínicas de forma dinâmica, possibiltando que os estudantes pratiquem habilidades essenciais em um ambiente seguro. Contudo, a maioria das publicações sobre experiências em EIP tem foco no compartilhamento das decisões exclusivamente entre os profissionais de saúde, não considerando de fato a participação do usuário. A exclusão da participação direta e consciente dos usuários nas decisões terapêuticas fere a autonomia no fazer-saúde e coloca os profissionais em posição de superioridade na relação terapêutica ao decidirem “pelo” paciente e não “com” ele. Tendo em vista a problemática apontada, o objetivo deste trabalho é descrever a realização de uma simulação clínica interprofissional baseada na atenção primária à saúde (APS) do SUS e com foco na centralidade do usuário, desenvolvida como parte de uma iniciativa de EIP no ensino superior.
Desenvolvimento do trabalho: A atividade acadêmica curricular em questão – “Educação Interprofissional para a Tomada de Decisão em Saúde” – foi ofertada no 2º semestre de 2022 pela Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais, como parte de uma pesquisa de doutorado. A carga horária foi de 30 horas/aula divididas em 15 encontros semanais. Participaram cinco cursos: Enfermagem (n = 5), Farmácia (n = 6), Medicina (n = 2), Psicologia (n = 4) e Odontologia (n = 3). Dentre as diferentes abordagens ativas utilizadas, destaca-se a simulação clínica que contou com a participação de uma paciente simulada. Desenvolveu-se um caso clínico envolvendo condições de saúde mais prevalentes na APS, repleto de aspectos subjetivos e relacionados aos determinantes sociais em saúde.
Na Etapa I, os estudantes foram divididos em grupos conforme os silos profissionais e cada grupo recebeu diferentes informações conforme encaminhamento da Agente Comunitária de Saúde. Cada grupo, separadamente, conduziu uma consulta inicial com a paciente simulada (duração máxima de 20 minutos). Todas as informações necessárias para a anamnese deveriam ser solicitadas com a própria paciente, incluindo prescrições e exames realizados. Na aula seguinte, de forma remota, cada profissão se reuniu para discutir e finalizar a elaboração do plano de cuidados uniprofissional.
Na Etapa II, os estudantes foram organizados em duas equipes de saúde contendo, pelo menos, um integrante de cada profissão, com o intuito de replicar as reuniões de matriciamento no âmbito da APS. Cada profissão apresentou seu plano de cuidados e o objetivo era que a equipe construísse um plano de cuidados único. Na aula seguinte, cada equipe se reuniu de forma remota para finalizar o plano de cuidados.
Na Etapa III, cada equipe de saúde elegeu um representante para realizar a consulta de retorno com a paciente simulada, momento em que foi apresentado e pactuado o plano de cuidados compartilhado (duração máxima de 30 minutos). Nesta etapa, o roteiro elaborado para a simulação incluiu mudanças em relação ao uso de medicamentos por parte da paciente, conforme intervenções realizadas por cada profissão na primeira etapa, tornando mais palpável as limitações do trabalho uniprofissional. Essas alterações demandaram ajustes no plano previamente elaborado pelas equipes e evidenciaram como os usuários tomam decisões constantemente.
Resultados: Nenhum dos estudantes havia participado, anteriormente, de uma simulação clínica interprofissional e, pelos relatos, foi possível observar que a atividade os marcou positivamente. Todos destacaram o desejo de terem mais experiências como essa. A estratégia de paciente simulado foi valorizada como uma abordagem que permitiu aproximar os estudantes de um contexto clínico mais real, além de trazer mais segurança em um ambiente em que é “possível errar”. De forma geral, os estudantes também reconheceram a importância da simulação para o desenvolvimento de habilidades clínicas, para além do aprimoramento de conhecimentos técnicos, como habilidades de comunicação e escuta ativa. Como destacou um dos estudantes em seu portfólio: “A personificação da paciente trouxe surpresa e entusiasmo para o atendimento. Recolher as informações com base nas perguntas que iam sendo feitas, foi um processo interessante, difícil e bastante realista, o que também permitiu vivenciar a experiência de atendimento na única básica de saúde, além de aplicar todos os temas trabalhados durante a disciplina, entre eles a escuta ativa do paciente, com olhar para suas necessidades e desejos”.
Além disso, da perspectiva docente, foi interessante observar como a participação de diferentes cursos ampliou a discussão para além do olhar específico de cada profissão. Conforme observação das tutoras, logo na consulta inicial cada profissão realizou intervenções conforme informações adquiridas (e vale pontuar que os estudantes não foram solicitados a sugerirem modificações neste momento). Muitas dessas intervenções foram duplicadas e/ou limitadas. Na reunião de matriciamento, os diferentes olhares foram lapidando o novo plano de cuidados a partir das informações que cada um conseguiu captar na consulta inicial, ampliando o conhecimento sobre a paciente. Um dos estudantes destaca esse ponto: “o que mais me chocou foi a questão da ferida do pé, que eu realmente não fazia ideia”.
Na simulação da consulta de retorno, ficou nítida a dificuldade dos estudantes em lidar com as mudanças inesperadas e com a resistência da paciente em relação ao plano proposto. Por outro lado, proporcionou que os estudantes reconhecessem a autonomia dos usuários no processo de decisão sobre sua própria saúde, além dos determinantes sociais que permeam a vida das pessoas. Como destacou um dos estudantes: “Pra mim, hoje em dia, já é muito claro e muito obrigatório que o paciente participe efetivamente. Que você pergunte, que você faça uma boa anamnese, que você fuja um pouco também das perguntas muito convencionais, por exemplo, da minha área só [Odontologia] e pergunte um pouco sobre a família, sobre o contexto social. (...) O paciente não sai de casa e leva só o problema de saúde dele. Ele leva toda a bagagem da vida. (...) Eu achei muito interessante também a questão da gente propor um plano pensando no paciente, e não propor um plano de cuidado pensando na doença, sabe?”.
Considerações finais: Este trabalho destaca a rica experiência de desenvolvimento e oferta de uma simulação clínica interprofissional baseada na APS e com foco na centralidade do usuário. Vale ressaltar que não foram identificadas na literatura outras experiências com essa abordagem que simulassem a participação ativa do usuário no processo de tomada de decisão, o que destaca seu ineditismo. Espera-se que este trabalho inspire outros docentes a incluírem em seus programas de ensino atividades de simulação clínica envolvendo o compartilhamento das decisões entre diferentes profissões e também incluindo a perspectiva dos pacientes.