Manejo das sequelas psicoemocionais da violência obstétrica durante o pré-natal: um relato de experiência na atenção básica
Apresentação:
O termo “violência obstétrica” abrange um conjunto de práticas que ocorrem durante o cuidado perinatal, envolvendo maus-tratos, negligência, indiferença ou desrespeito à mulher. Entre tais atos, incluem-se agressões verbais, abusos psicológicos e violência física no que tange a intervenções obstétricas proscritas ou não consentidas.
Episódios abusivos experienciados durante o parto desempenham um papel significativo na deterioração da saúde mental das mulheres no período puerperal, favorecendo a emergência de transtornos depressivos e relacionados ao estresse. Assim, é urgente a implementação de medidas de prevenção quaternária pelo Médico de Família e Comunidade (MFC), no sentido de orientar as gestantes sobre intervenções questionáveis, buscando minimizar sua vulnerabilidade a iatrogenias.
A elaboração de um plano conjunto, terceiro componente do Método Clínico Centrado na Pessoa, abre espaço para a construção de um Plano de Parto como estratégia que, além de fortalecer o vínculo com a equipe, mitiga de maneira relevante a fragilidade da mulher, uma vez que aumenta seu conhecimento sobre práticas do parto, fortalecendo suas escolhas e elevando sua autoconfiança.
Objetivo:
Discorrer sobre a condução de um pré-natal na APS após episódio anterior de violência obstétrica, enfatizando a importância da atuação do MFC no manejo das sequelas psicoemocionais e na prevenção de novos eventos.
Metodologia:
O presente estudo é um relato de experiência que narra a vivência da condução de um pré-natal de mulher com antecedente pessoal de violência obstétrica, incluindo: acolhimento e compreensão de seu contexto biopsicossocial; identificação de riscos; intensificação do vínculo e construção de um plano conjunto para a busca de uma nova experiência de parto.
Resultados
“Eu só quero que esse bebê fique aqui na minha barriga. Não quero que saia!”. Essa era uma das frases repetidas constantemente por I.F.S., 38 anos, em sua primeira consulta pré-natal. Não se tratava de uma não-aceitação da gestação ou do bebê em si. Ela enfatizava que havia sonhado com esse momento em diversas ocasiões, mas, não conseguia se desvincular de seu passado.
Nosso primeiro encontro foi voltado ao acolhimento da aflição latente e identificação das demandas de saúde mental. Na consulta seguinte, a escuta foi conduzida por mim, pela psicóloga e pela enfermeira da equipe. A paciente relatou que sua primeira gestação foi planejada, e o pré-natal foi feito em USF. Enquanto ela narrava a história do parto anterior, percebi que ela foi ficando mais agitada.
I.F.S relatou que, quando estava com 41 semanas, foi à maternidade para indução do parto. Passadas 24h do início da indução, a dor ficou mais intensa. A equipe parecia agir com impaciência, tecendo comentários jocosos sobre os sinais de exaustão que ela começava a apresentar. Além disso, não lhe foi mais permitido alimentar-se. No período expulsivo, foi levada à sala de parto, sem a presença de seu companheiro. Somadas às dores das contrações, existia a dor dos toques vaginais repetidos e das manobras para “dilatação” do períneo. Em suas palavras, “o médico me abria com os dedos e eu tinha medo de rasgar”.
Na fase final, foi feita uma episiotomia com tesoura que lhe rendeu uma lesão que se estendeu até o esfíncter anal, inclusive com permanência de cicatriz visível. Além disso, ela evoluiu com intensas dores por uma suspeita de fratura de costela após manobra de Kristeller durante o trabalho de parto.
A paciente conviveu, durante todos esses anos, com pensamentos intrusivos e lembranças recorrentes do momento do parto, além de choro descontrolado sempre que lembra do que foi vivido. Ela reforçava: “Eu quero muito esse bebê. É difícil explicar que eu quero esse filho, mas não quero um parto” (I.F.S).
Diante desse conflito, foi oferecido acompanhamento psicológico e iniciado tratamento farmacológico, além de elaboração de estratégias de combate aos pensamentos intrusivos. Na quarta consulta, como de costume, fui buscá-la na sala de espera, e ela, por alguns segundos, deteve sua atenção em meu ventre. Eu estava gestante de 20 semanas. A barriga já estava evidente nas consultas anteriores, mas era como se algo apartasse essa realidade da paciente.
Naquele dia, no entanto, ela perguntou minha idade gestacional, qual era o sexo e o nome do bebê. E emendou: “Lá em casa, todos estão torcendo por uma menina. E eu também. Já dá para descobrir o que é?”. Aproveitei o ensejo e perguntei sobre a presença de sintomas mais comuns no primeiro trimestre e calculei sua idade gestacional. Após a manifestação de seu desejo por tentar ouvir os batimentos cardiofetais, iniciei o exame físico. Depois de algumas tentativas, consegui captar, com o sonar, o som que I.F.S nem sabia que desejava tanto ouvir. Lágrimas silenciosas, um sorriso tímido e perguntas como “Tá tudo bem como ele?”, me sinalizaram que ela estava pronta para, de fato, seguir com seu pré-natal.
As consultas seguintes foram marcadas pela escuta das expectativas em relação ao parto. A busca pela ressignificação do ato de parir foi embasada em informação técnica dada em consulta, amparo psicoemocional e fortalecimento da rede de apoio. Também foi apresentada a ferramenta do Plano de Parto e sugerido que I.F.S refletisse sobre aspectos que seriam indispensáveis para a construção de seu próprio plano.
Em uma certa madrugada, recebi uma imagem do aplicativo de contrações que apresentei a ela durante as consultas. Era chegada a hora. Instruí que ela fosse à maternidade e não obtive mais respostas. Acordei, no dia seguinte, recebendo fotos do grande encontro curador entre mãe e filha. A menina nasceu por uma cesariana intraparto (indicada por sofrimento fetal agudo), sem intercorrências, de maneira tranquila, segura e respeitosa.
Conclusão:
A experiência vivenciada na condução de um pré-natal de uma paciente com graves sequelas psicoemocionais após experiência anterior de V.O. desperta um anseio por reconhecer e combater a realidade obstétrica hostil que a mulher ainda precisa enfrentar.
Os impactos psicoemocionais de tais abusos são profundos e dolorosos. Tais efeitos devem ser mitigados com a implementação de consultas terapêuticas, acompanhamento com profissionais habilitados a realizar psicoterapia e tratamento farmacológico adjuvante. É urgente a revisão dos modelos de atendimento perinatal consolidados pelo paradigma da medicina cartesiana, dando vez à valorização das experiências subjetivas da paciente, à implementação de consultas psicodinâmicas e à integração da medicina biopsicossocial ao cuidado no pré-natal, através do MFC.
Finalmente, a construção conjunta do plano de parto é uma ferramenta essencial para facilitar a comunicação entre a paciente e a equipe; promover uma reflexão crítica sobre as práticas obstétricas vigentes; compartilhar informações sobre boas práticas no contexto perinatal que assegurem o empoderamento e fortalecimento da parturiente; e garantir que suas expectativas e desejos sejam respeitados durante o pré-parto e o parto.