Introdução: A enfermagem pode ser definida como a ciência do cuidado integral e integrador em saúde. O enfermeiro assume um papel cada vez mais decisivo no que se refere à identificação das necessidades de cuidado e no acolhimento prestado aos sujeitos, independentemente de suas características socioeconômicas, culturais, sexuais e de gênero. Em se tratando das questões de gênero, é preciso considerar a transexualidade, a qual se refere às pessoas que possuem identidade de gênero diferente do sexo designado durante o nascimento. Por não se sentirem identificados e correspondidos com o sexo biologicamente atribuído ao nascer, muitas vezes, essas pessoas buscam modificações na aparência ou função corporal por meio de terapias hormonais, cirurgias e/ou mudanças comportamentais. Apesar disso, é fundamental salientar que as demandas de saúde da população transexual vão além da mudança de sexo e acesso às tecnologias. Também incluem a necessidade de vínculo com os serviços de saúde, a promoção do autocuidado, do seu protagonismo e autonomia. Nessa direção, destaca-se a Política Nacional de Saúde Integral da População de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais ou Transgêneros (LGBT), que reconhece a identidade de gênero como determinante social no processo saúde/doença e propõe estratégias de melhoria nas condições de saúde desta comunidade, além da redução das desigualdades no acesso às condições de moradia, trabalho, educação, lazer e saúde. Nesse sentido, considerando o papel do enfermeiro na atenção primária à saúde e as demandas e singularidades da população transexual, o objetivo do estudo foi conhecer a experiência de cuidado à população transexual presente no discurso de enfermeiros de Estratégias de Saúde da Família de um município da Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul. Método: Pesquisa qualitativa, desenvolvida entre novembro e dezembro de 2020, com oito enfermeiros atuantes na Atenção Primária à Saúde de um município na Fronteira Oeste do estado do Rio Grande do Sul. Os dados foram produzidos a partir da técnica de entrevista semiestruturada individual e, na sequência, submetidos à análise de conteúdo temática. O projeto de pesquisa foi aprovado em 03 de maio de 2020, sob o CAAE 24859019.4.0000.5323, número do processo 4.003.963. Resultados e discussão: Na trajetória profissional, alguns enfermeiros atenderam pacientes transexuais. Nessas vivências, o atendimento envolveu diferentes demandas, desde o desejo por modificações corporais para maior aproximação com a identidade de gênero e orientação sexual até questões relativas às condições de saúde-doença, como acompanhamento e tratamento pressórico e glicêmico, a identificação e tratamento de infecções sexualmente transmissíveis e anticoncepção. O processo de transição de gênero percorrido pela pessoa transexual é complexo e pode ser amenizado ou agravado pela interseccionalidade com as vivências pessoais, condições socioeconômicas, escolaridade e raça, além de dificuldades no acesso à saúde. Para a construção de um corpo que auto afirme sua identidade de gênero, pode ser necessário a pessoa adequar o seu comportamento, sua postura, recorrer a terapias hormonais e enfrentar complicações cirúrgicas, que podem acarretar em prazeres ou sofrimentos. Reconhece-se a importância de o enfermeiro estabelecer e manter vínculo com os usuários, garantindo ambiente respeitoso e acolhedor para que não se sintam constrangidos e deixem de buscar pela orientação adequada para recorrer à automedicação e à exposição a diversos riscos em serviços e práticas clandestinas de manipulação corporal. Até pouco tempo, as políticas de saúde para pessoas transexuais priorizavam ações de prevenção e tratamento de infecções sexualmente transmissíveis em função das altas taxas de HIV/AIDS relacionadas à prática de trabalho sexual. Atualmente, já é possível encontrar políticas e ações em saúde que vão além desse olhar. Conforme verificado no presente estudo, além das demandas pessoais ligadas à alteração biológica, as pessoas transexuais compartilham de necessidades comuns a outras pessoas que procuram os serviços de saúde. Elas também estão em busca da adoção de hábitos de vida saudáveis, prevenção e rastreamento de doenças, planejamento reprodutivo e acompanhamento em relação à hipertensão arterial e diabetes mellitus. Assim, considera-se que é imprescindível aos enfermeiros e demais profissionais da saúde acolher e conhecer as necessidades específicas da população transexual, ouvir suas demandas e anseios, compartilhar saberes e percepções e, assim, prestar um cuidado mais congruente com as necessidades de saúde dessa população. Os enfermeiros demonstraram preocupação em respeitar a maneira como as pessoas transexuais se veem e como se relacionam com o mundo e outras pessoas. Os profissionais demonstraram a importância de chamar o paciente pelo nome social e observaram certo constrangimento da população transexual ao acessar o serviço de saúde. No Brasil, apenas no ano de 2009, foi possível que usuários do SUS utilizassem seu nome social nos serviços de atendimento, direito garantido pela Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde. A necessidade de ter o nome social registrado é fundamental para as pessoas transexuais, uma vez que esse aspecto se configura como reafirmação da sua própria existência e resistência. Porém, apesar do Provimento do Conselho Nacional de Justiça nº 73/2018 autorizar a retificação de registro civil de homens e mulheres transexuais pelos cartórios de registro civil, não demandando mais processos judiciais, é válido destacar que o percurso ainda é longo, pois ainda não há a aceitação dessa alteração pela sociedade. A diferença entre o nome de registro civil e a aparência física é um dos motivos de discriminação que pode levar ao isolamento social, à falta de oportunidade de emprego e ao distanciamento dos serviços de saúde. Ainda, reconhece-se que a população transexual, muitas vezes, é excluída dos meios tradicionais de suporte, como a família, escola, serviços de saúde e comunidade local, devido à discriminação, negligência e violência vivenciadas nesses ambientes. A criação dessas barreiras normatizadoras e o desconhecimento acerca da população transexual resultam na invisibilidade das necessidades de saúde dessas pessoas, causando prejuízo em relação aos cuidados que deveriam ser empregados a eles. No estudo em tela, os enfermeiros também apresentaram dificuldades/desafios em relação ao seu preparo para atender o público transexual nos serviços de saúde, principalmente em relação à falta de abordagens sobre o tema na graduação e ausência de cursos de capacitação, durante a atuação profissional. Além disso, citaram o preconceito e a falta de empatia como entraves no acesso dessa população aos serviços de saúde. É necessário investir no acolhimento das pessoas transexuais na atenção primária à saúde, já que esta é a porta de entrada prioritária na Rede. Para isso, é imprescindível a qualificação dos profissionais de saúde, visando combater as situações de discriminação vivenciadas pela população que utiliza o serviço. Além disso, se faz necessário aprimorar a formação dos profissionais de saúde, de modo a permitir a redução das situações de violência e sofrimento vivenciados pela população transexual. Considerações finais: sob o ponto de vista dos enfermeiros, as necessidades em saúde da população trans são tangentes e necessitam de olhar mais humano e respeitoso. Além disso, percebe-se que os enfermeiros demonstram insegurança no atendimento a esse público. Foram mencionados desafios capazes de repercutir no acesso aos serviços de saúde e na trajetória dessas pessoas dentro da rede. Portanto, esse estudo suscita reflexões importantes sobre a prática de enfermagem frente à população transexual. Também sinaliza a necessidade de incluir as temáticas de gênero e sexualidade na formação acadêmica e nas capacitações profissionais, buscando sensibilizar para a necessidade de atendimento de qualidade e respeitoso ao público transexual.