O ser mulher é enfoque de investigação da psicanálise desde sua origem. Freud, como muitos médicos de sua época, colocou a mãe no epicentro dos seus estudos e, por isso, ao mesmo tempo que tem sua relevância ao se debruçar sobre o feminino e seus atravessamentos psíquicos, também foi responsável por embasar um discurso que isola sobre o ser mulher a função materna de cuidados com a prole, desconsiderando também os seus atravessamentos etnico-raciais e de classe. Embora o paradigma que anteriormente conectava feminilidade e maternidade já não seja adequado para descrever as mulheres nos dias de hoje, ele continua enraizado no conceito social sobre o gênero feminino.
O feminismo hegemônico debate sobre a entrada no mercado de trabalho e dupla jornada, e sobre o direito ou não de exercer a função materna desde sua origem, porém é caracterizado também por silenciar mulheres que realizavam o movimento de tensionar os discursos que universalizam o ser mulher, desconsiderando aquelas em posições de menor poder social, como as mulheres negras e indígenas. Sendo assim, quando alguém olha para uma mulher negra ela não é vista como mulher, nem como negra, ela é desde o primeiro olhar identificada as duas categorias ao mesmo tempo, vista como ‘mulher negra’, e isso traz vivências específicas para a forma como ela irá transitar na sociedade. Parece-nos possível afirmar que a mulher negra representaria uma das figuras do estrangeiro, tanto para os homens (brancos e negros) como para as próprias mulheres brancas.
Uma pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas em 2023, que analisou os números de 2012 a 2022 da PNAD, elaborada pelo IBGE, mostra que o Brasil tem mais de 11 milhões de mães que criam filhos sozinhas. Na última década, o país ganhou 1,7 milhão de mães com a responsabilidade de criarem os filhos sem a ajuda do pai. O levantamento mostra também que 90% das mulheres que se tornaram mães solo entre 2012 e 2022 são negras. Quase 15% dos lares brasileiros são chefiados por mães solo. A proporção é maior nas regiões Norte e Nordeste. A maioria, 72,4%, vive só com os filhos e não conta com uma rede de apoio próxima. A realidade vivida por mulheres negras na sociedade brasileira é atravessada pelas opressões de gênero, raça e classe. A antropóloga e psicanalista Lélia Gonzalez denuncia como o racismo e o sexismo condicionam as experiências de vida e trabalho das mulheres negras, categorizando-as na base da pirâmide social e sendo alvos constantes de violências e violações sistêmicas.
Gonzalez também aponta como a Mãe Preta na constituição cultural brasileira, com o mito da democracia racial e a sua consequente tentativa de apagamento da cultura negra e indigena, é feita a partir da imagem da mulher negra como figura de cuidado incondicional e passivo, que seria desprovida de personalidade e estaria de forma neutra assumindo a função materna para a parcela populacional elitizada. Neste imaginário, se funda a cultura latino-afro-americana, como aponta a autora, tendo a mulher negra lugar essencial e ignorado na formação e na atribuição histórico-social. O processo de contar sua própria biografia, ao se tornar discurso narrado pelo próprio sujeito autor e protagonista, instaura sempre um campo de renegociação e reinvenção identitária, que pode tensionar essas lógicas sociais. A apropriação da própria narrativa é imprescindivel para a população negra, sobretudo para as mulheres negras que são objeto de tríplice discriminação.
A esse respeito, a Psicanálise reconhece o sujeito como um ser social que se subjetiva por meio das representações que são estabelecidas na relação com o outro da mesma espécie que lhe transmita a produção de significantes. Nesta perspectiva, a Psicanálise revela a existência da dimensão de um inconsciente, que está para além da consciência na psique humana, mas que pode ser acessado por meio da linguagem, como é reforçado pela teoria lacaniana. As narrativas desempenham um papel significativo, pois conferem sentido às palavras para o narrador que as elabora. Revela a posição do sujeito, permitindo-lhe articular suas experiências e apresentar sua forma de se apropriar (ou não) do seu discurso e do processo de sua formação.
Esse processo compõe também o trabalho de Conceição Evaristo, que se relaciona com o conceito de escrevivência formulado por ela: “Escrever pode ser uma espécie de vingança, talvez desafio, um modo de ferir o silêncio imposto, ou ainda, executar um gesto de teimosia esperança”. Portanto, envolve um processo de criação de algo que se passa entre o vivido e a escrita negra, no caso desta pesquisa, do auto-relato. Entendendo que a memória é construída, e essa construção não é natural ou dada.
Dessa forma, tem sua relevância nos debruçarmos sobre as narrativas de histórias de vida de algumas mulheres negras que exercem a função materna como possibilidade de perceber e compreender a complexidade social brasileira. Como coloca o doutor Luiz Silva (Cuti), a literatura é um dos fios que mais oferece resistência às lógicas de subjugação, podendo rasgar a mordaça das populações marginalizadas, ao alimentar o imaginário coletivo de todos os que dela se alimentam direta ou indiretamente. Assim, as narrativas de autoras negras surgem como uma saída e aposta possível, e é nesta posição que esse trabalho se sustenta.
Tendo em vista a perspectiva da equidade, um dos princípios do SUS, é emergente a necessidade de que se incorporem ações específicas para assistência das mulheres negras, e é também desta inquietação que este trabalho se nutre. O objetivo geral desta pesquisa é compreender e aproximar as produções de sentidos sobre maternidades nas histórias de vida de mães negras na cidade de Natal/RN com as escrevivências de Conceição Evaristo. Trata-se de uma pesquisa qualitativa articulada às narrativas biográficas para apreensão das histórias de vidas de mulheres negras mães, tomando a perspectiva da psicanálise em interlocução com os estudos de gênero e relações étnico-raciais. A pesquisa, assim, se debruça nesta inter-relação entre a privacidade de um sujeito e o espaço sócio-histórico de sua existência, seja ampliando a compreensão dos fenômenos sociais e grupais, seja escutando um sujeito a recontar a narrativa sobre si mesma.
Para isso, o planejamento é de que a pesquisa se dê dentro das políticas públicas com a proposição de grupos de mulheres, não se pretendendo delimitar um número fixo de participantes nesta etapa inicial, sendo um mediador da intervenção o uso da arte como disparadora de narrativas biográficas. A literatura de Evaristo será inspiradora das narrativas que podem ocorrer em espaços coletivos de “fazer com”, seja a confecção de trabalhos manuais como o crochê, a fotografia e colagens, em oficinas organizadas de acordo com os desejos das participantes. Serão propostos fazeres que incentivem o falar sobre si e as significações sobre o ser mãe para o fortalecimento de vínculos comunitários e de alternativas de cuidado que não recaiam na sobrecarga dessas mulheres. Além disso, há o comprometimento ético-político baseado no caráter transformador, emancipatório, que tem o objetivo de construir subsídios para o combate às desigualdades e iniquidades sociais, que por muito tempo foram ignoradas no fazer das psicólogas, dando margem para discursos conservadores e excludentes.