Os deslocamentos humanos que dão forma às migrações contemporâneas passaram a ganhar grande relevância nos contextos nacional e internacional, visto que se intensificaram nos últimos anos. De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), uma em cada 74 pessoas no mundo estão em situação de deslocamento forçado. A guerra entre Rússia e Ucrânia foi o principal causador desse efeito no período, chegando a 5,7 milhões, ao final de 2022. Tais números representam um fluxo mais rápido de refugiados desde a Segunda Guerra Mundial. No Brasil, ao final de 2022, as solicitações de reconhecimento de refúgio totalizaram 348.067 registros e havia, aproximadamente, 66 mil refugiados, desde o início da última década. O debate acerca da migração forçada evidência que a proteção de direitos fundamentais dos refugiados é um marco importante, contudo a temática não pode ser vista apenas pela ótica da proteção jurídica. É preciso também que haja mecanismos de integração nos locais que recebem os refugiados. A integração local tem como objetivo proporcionar a adaptação/convivência do imigrante junto à sociedade, sendo um procedimento difícil e multifatorial. Assim, é importante oportunizar aos refugiados serviços de educação, assistência social, saúde, entre outros, a fim de se promover a saúde e o bem-estar dessa população.
Quanto ao acesso à educação, no que se refere aos refugiados, os dados (internacionais e nacionais) apontam para números deficitários, em todos os níveis. No Brasil há cerca de apenas 664 refugiados e pessoas em situação de refúgio, matriculados em instituições de ensino superior - 613 na graduação, 39 no mestrado e 12 no doutorado. Considerando essa situação, foram criados dispositivos legais e ações junto as instituições de ensino superior (IES), a fim de salvaguardar e promover direitos fundamentais a população refugiada. Entre tais políticas, uma que democratiza o acesso ao ensino superior, impactando diretamente na promoção da saúde, é a política afirmativa que versa sobre a reserva de vagas e o ingresso de refugiados nas universidades brasileiras.
Uma das instituições que compõem esse grupo é a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que tem se proposto a oferecer aos refugiados, além de outras ações de acolhimento, acesso “facilitado” (processo diferenciado de ingresso) à formação de nível superior, com base na Lei nº 9474, de julho de 1997, mais conhecida como Estatuto do Refugiado, combinada com a Lei das Migrações, nº 13.445, de maio de 2017, e demais legislações em vigor. Atualmente, o ingresso facilitado para refugiados é facultativo, ou seja, cada universidade tem autonomia para decidir sobre o pleito e abertura de processos seletivos diferenciados, não havendo regras ou procedimentos unificados. Esse acesso facilitado ainda é uma iniciativa incipiente, tendo ocorrido a partir de 2003, com a criação da Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM). Contudo, apesar da instituição do acesso diferenciado, o número de refugiados ingressantes ainda é pouco significativo. Esse paradoxo traz à tona um grande problema, pois ao mesmo tempo em que há um aumento no contingente de pessoas amparadas pelas leis, seus acessos ao ensino superior permanecem baixos e, por vezes, inexistente. Tal situação instiga a investigar, a partir das narrativas de refugiados, as experiências vividas por esses migrantes e os modos como operam e constituem o estudante refugiado, bem como seus atravessamentos no que diz respeito à promoção da saúde.
Dessa forma, objetiva-se apresentar experiências de estudantes graduandos refugiados da UFRGS, a partir de suas narrativas, articulando questões relativas à educação e à promoção da saúde. Para tanto, foram utilizadas estratégias de inspiração etnográfica pós-moderna, inseridas na vertente pós-estruturalista dos Estudos Culturais, a partir de teorizações foucaultianas. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFRGS, sob o número CAAE 45217521.3.0000.5347 e durante todo o estudo foram observados os procedimentos éticos, previstos nas regulamentações com seres humanos no Brasil. Os dados foram concebidos por meio de entrevistas individuais com seis estudantes da UFRGS, ingressados por meio dos Editais para Ingresso de Pessoas em Situação de Refúgio nos Cursos de Graduação. Das análises emergiram três eixos analíticos, inspirados nas etapas do processo migratório: a - movimentos da saída do país de origem até chegada ao Brasil; b - percepções após achegada ao Brasil; c - sobre ser estudante refugiado da UFRGS: trajetórias atuais e futuras, sendo os resultados sustentados entrecruzando esses três eixos analíticos.
As narrativas revelaram uma série de interlocuções entre a migração, trabalho, desejo de estudar, promoção da saúde, bem como questões econômicas e burocráticas. Notou-se entre outras coisas, que as questões que envolvem a língua e a cultura, atravessaram e se fizeram presentes em todos os eixos. De maneira muito especial, chamou atenção a semelhança dos relatos e histórias de cada estudante em relação aos projetos migratórios, como os motivos da saída (melhores condições de vida, possibilidade de estudar e trabalhar, dentre outras), a inserção no mercado de trabalho, os desafios para ingresso no ensino superior e para conciliar a vida com os estudos, principalmente, no que concerne ao aspecto financeiro (boa parte dos estudantes precisou abandonar o trabalho, ou trabalhar a noite, já que os cursos são diurnos). As narrativas também trouxeram luz a um dos aspectos mais ressaltados no estudo: o fato de que o aluno ingressa na graduação, mas encontra barreiras para sua permanência. Assim, apesar dos estudantes se sentirem gratos pela inserção numa instituição de ensino público federal, sugerem melhorias ao processo de acesso e permanência do estudante refugiado na Universidade.
Essas sugestões associam-se a marcadores de saúde que podem se relacionar, tanto com potencialização ou precarização da saúde mental quanto com possibilidades de progressão social que garantiriam o fortalecimento de acesso a Determinantes Social da Saúde mais positivos. Tais questões corroboram o quanto a Universidade necessita se ressignificar para, efetivamente, incluir os estudantes refugiados, de forma mais harmônica e solidária, garantindo, assim, também, melhores condições de saúde individuais e coletivas. É inegável a importância da participação das universidades no processo de proteção integral e integração local, principalmente no que se refere às ações afirmativas de acesso diferenciado de refugiados como uma forma de promoção de saúde, que precisa ser observada e reforçada, a fim de que se torne realmente, eficaz.