O acesso da população a métodos contraceptivos modernos é parte essencial da saúde sexual e reprodutiva. Do mesmo modo, o direito de decidir ter filhos ou não, quantos ter e o intervalo entre as gestações é reconhecido como um direito constitucional a ser garantido pelo Estado brasileiro.
Nesse contexto, a atenção primária em saúde (APS) se apresenta como a principal via do Sistema Único de Saúde (SUS) para implementar políticas de direitos sexuais e reprodutivos, não apenas realizando a orientação contraceptiva e a distribuição dos insumos, como também ofertando ações preventivas e de promoção a uma vida sexual segura, consciente e autônoma.
Entre os métodos contraceptivos disponíveis na carteira de serviços da APS na cidade do Rio de Janeiro, está o dispositivo intrauterino (DIU) de cobre, garantido em nível federal. Como também, desde dezembro de 2022, por iniciativa e financiamento próprio, o município também oferta o DIU hormonal, expandindo assim as opções contraceptivas disponíveis para as pessoas do sexo feminino com uma tecnologia segura, sustentável e de alta satisfação.
Contudo, é sabido que várias barreiras de acesso aos DIU se impõe no cotidiano dos serviços. Além disso, uma vez que os fluxos de trabalho para esses contraceptivos ainda estão passando por construção e reajustes, se faz fundamental seu estudo para proposição de soluções e melhorias de forma a garantir um acesso equitativo e eficaz. Assim, o objetivo deste estudo foi conhecer o panorama do serviço contraceptivo com DIU em uma unidade da Estratégia de Saúde da Família (ESF) na cidade do Rio de Janeiro, sob a perspectiva dos prestadores de cuidados em saúde (PCS).
Este estudo foi extraído de um trabalho de conclusão de curso apresentado em março de 2024 para a Residência Multiprofissional em Saúde da Família e Comunidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tratou-se de uma pesquisa de cunho qualitativo e descritivo, realizado em uma unidade-escola ligada à ESF na cidade do Rio de Janeiro, que possuía 14 equipes. Os participantes selecionados para a pesquisa foram PCS das áreas de enfermagem, medicina e agentes comunitários, que estiveram trabalhando na APS por pelo menos 6 meses. Aqueles que estavam em licença, férias ou afastamento foram excluídos. Os dados foram coletados por meio de entrevistas com roteiro semiestruturado e a análise do conteúdo das entrevistas foi conduzida pelo método de Bardin.
Doze indivíduos foram entrevistados no estudo, sendo a maioria mulheres (68,7%) e com ensino superior completo (58,3%). A idade mediana foi de 30 anos. A maioria dos entrevistados era composta por agentes comunitários de saúde (41,7%). Houve igual porcentagem (41,7%) entre aqueles com "até 3 anos" e "6 anos ou mais" de experiência na APS, e metade dos participantes possuía "até 3 anos" de atuação na unidade-cenário (50%). No que diz respeito ao panorama do serviço contraceptivo com DIU na unidade em estudo, emergiram das entrevistas quatro unidades de contexto, totalizando 95 unidades de conteúdo. Essas unidades de contexto abordaram: 1- Aspectos dos insumos contraceptivos na unidade e na rede, com 57 unidades de conteúdo; 2- Fatores relacionados aos PCS, com 21; 3- Aspectos internos do serviço contraceptivo, com 12; e 4- Aspectos externos ao serviço contraceptivo, com cinco.
Quanto aos insumos contraceptivos, os achados descreveram duas situações distintas, apesar da pesquisa ter sido realizada em uma mesma unidade de saúde. No primeiro cenário, houve uma disponibilidade satisfatória de insumos, permitindo que o tipo de DIU fosse escolhido exclusivamente pela preferência da pessoa e onde a equipe se fez capaz de atender completamente às demandas contraceptivas de suas cadastradas. No segundo cenário, o mais comum, houve uma escassez de recursos, levando à criação de listas de espera das pessoas que manifestaram interesse pelo método. Os relatos de desabastecimento foram frequentes, apesar disso, em ambas situações, a reposição do estoque foi relatada como rápida. Essa dualidade pode estar relacionada às características da população atendida e às habilidades de comunicação de cada equipe.
Foram mencionados também a recente disponibilização do implante subdérmico na rede, com a possibilidade de regulação pela APS para a inserção, bem como a introdução do DIU hormonal no serviço pelos médicos de equipe. Uma vez que ainda é vetada a inserção desta tecnologia pela enfermagem. Ainda, os entrevistados demonstraram satisfação com a ampliação das opções contraceptivas, especialmente por serem elas elegíveis às adolescentes. Outro achado foi uma nova demanda de troca do LARC utilizado, sobretudo, do DIU de cobre pelo DIU hormonal ou implante subdérmico.
Sobre os fatores relacionados aos PCS, os fluxos de trabalho dos DIU envolveram principalmente aqueles da enfermagem, medicina e agentes comunitários na oferta, organização da lista de espera, priorização de casos e agendamento dos procedimentos. Isso ocorreria, no entanto, sem muita colaboração por parte dos técnicos de enfermagem. Os participantes relacionaram esse acontecimento ao papel predominantemente direcionado às atividades internas e procedimentais desempenhadas pela categoria no contexto das unidades de APS na cidade do Rio de Janeiro.
No que diz respeito aos aspectos internos do serviço contraceptivo, os PCS expressaram preocupação com o abandono do preservativo pela população em uso do DIU. Além disso, foi mencionada a dificuldade de gerenciar a lista de espera para o método, que muitas vezes encontra-se desatualizada. Isso levou, muitas vezes, os PCS a recorrerem aos horários estendidos, inicialmente pensado para o atendimento da população trabalhadora pós-expediente, para lidar com o gerenciamento do procedimento do DIU. Por fim, foi destacada a maior autonomia dos enfermeiros de ESF na resolução das demandas por contracepção após a habilitação em DIU.
Dos aspectos externos do serviço contraceptivo, foi mencionado o período da pandemia por COVID-19, em que os serviços contraceptivos de LARC teriam ficado restritos. Durante a pesquisa, contudo, houve a percepção de expansão do acesso, especialmente devido à capacitação de enfermeiros para a inserção do DIU. No entanto, foi destacado que os efeitos colaterais do método ainda são barreiras para a adesão, principalmente se houver na rede de apoio da usuária pessoas com experiência ou atitude negativa à tecnologia.
Portanto, o estudo sobre o funcionamento do serviço de contracepção com DIU revelou diversos desafios enfrentados no fluxo de trabalho na cidade do Rio de Janeiro, tais como a necessidade de manter a disponibilidade adequada de insumos, o crescimento de uma nova demanda por troca do LARC utilizado, as dificuldades de integração dos técnicos de enfermagem no procedimento do DIU, a preocupação com a diminuição do uso do preservativo entre as usuárias que aderiram ao método, a preservação do horário estendido para atendimento, a manutenção de listas de espera atualizadas e os desafios do manejo dos efeitos colaterais do DIU para garantir uma experiência satisfatória. Todos esses desafios requerem discussão e troca de experiências exitosas para serem superados.
Por outro lado, conquistas significativas podem ser observadas, como a ampliação das opções contraceptivas disponíveis no SUS e o notável avanço no acesso da população ao DIU, impulsionado pela participação ativa dos enfermeiros no procedimento de inserção da tecnologia. Essa autonomia para lidar com as demandas contraceptivas relacionadas ao DIU permite aos profissionais serem mais resolutivos na promoção e garantia dos direitos sexuais e reprodutivos das pessoas do sexo feminino.