Essa narrativa diz respeito ao projeto de doutoramento no Programa de Pós- Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva. Escrevemos o mesmo na premissa de dar lugar a outras existências, talvez da existência passagem, rio. Fluido, fluindo. A partir do desejo por pesquisar a clínica a partir do encontro com corpos nômades, aqueles que vivem das/nas ruas. Força nascente que encontra nas inquietações o escorrer de possibilidade de um corpo que pede passagem, que se permeia para além do visível aos olhos. Escrever esse projeto é revirar a vida que me habita antes mesmo de nascido, a contrapelo dos "nomadismos” que a vida me presenteou.
Evidentemente que escolher o campo daqueles que vivenciam as ruas como modos de existir faz parte da minha singularidade já a muito tempo, e essa escolha se faz como continuidade sim, de uma pesquisa de mestrado. Mas discutir e pretender pesquisar clínica e corpo, tem ligação com minha jornada como psicólogo, no que desejo navegar através de narrativas qual os atendimentos individuais e grupais, me possibilitaram experiênciar intervenções no sistema prisional, manicômios, comunidades terapêuticas, nas ruas, em territórios múltiplos, num hospital em tempos de covid-19 e na psicoterapia, se faz intrigante e até uma dívida ética na minha cartografia polifônica de minha existência: pesquisar sobre a clínica.
Tal discussão, sobre biopolítica, é parte central desse estudo e faz-se imprescindível ao debate e explicitação do tema, ainda que em momento introdutório da mesma pois, partimos do pressuposto de que cada trabalho, prática e reflexão a qual nos debruçamos nos toca, por isso cremos que pensar sobre corpo e clínica é também a oportunidade de dialogarmos com tal conceito. Entendendo sua importância para essa temática e construção. Nesse paradoxo de controle sobre a vida e potência da mesma. O que estamos efetuando de clínico, nesses encontros de corpos? Atravessados por perguntas-resistências, questionamentos e gaguejos, nos lançamos num outro desafio: pensar e discutir uma clínica a partir da afirmação da vida, inventiva nas possibilidades da existência, e na discussão da mesma, pensar suas configurações, paradoxos e dicotomias no cuidado com viventes das ruas.
Escolhemos o texto Em Busca da Clínica dos Afetos dos autores Túlio Franco e Heletícia Galavote para pensar nosso projeto de pesquisa do doutorado. Partindo de uma atitude de produzir reflexões sobre corpo e clínica, ou a clínica do encontro de corpos, utilizaremos nesse trabalho um pouco do que temos refletido a partir do grupo de pesquisa OBSERVATÓRIO DE REDES nas orientações e discussões dessa tentativa de pesquisa.
Partindo da insuficiência da ideia de corpo cunhada na metade do séc XVIII por uma formatação de certa clínica, a clínica do olhar interferida pela perspectiva do corpo anátomo-clínico. Identificamos uma lógica dominante nos modos de pensar o cuidado. Rolnik nos alerta sobre a concepção do olhar retina que baliza concepções de corpo debruçados na geografia, nas estruturas enxergáveis, no visível. Que não tem a capacidade de se transpor para o sujeito que habita o corpo. Ou melhor dizendo o corpo para além do visível. O corpo que buscamos encontrar na tarefa ingrata e ao mesmo tempo desejável. O risco de nunca encontrarmos, mas a possibilidade de expandir modos de significar outras modalidade de corpo, com entendimento sempre aberto e incompleto na tarefa poética de pulsar novas possibilidades e produção de novos modos de existir.
Se por um lado Rolnik nos adverte sobre “olhar retina”, por outro sua concepção de corpo vibrátil tem nos influenciado como produtor de desejo nesse nosso buscar. A ideia de corpo vibrátil. Nisso que embaça nas lentes do “olho retina”, escapa da sua compreensão e desmancha com certezas fundadas, esse corpo que no lugar dos órgãos habita intensidades, e precisam de um limiar de sensibilidade para ser buscado na sua compreensão.
Tomar a ideia da anatomia do corpo humano e sua maneira de operar o cuidado é compreender a normatização como guia de uma série de práticas instituídas no nosso cotidiano colocamos como contraponto, para trazer sensível outra formas a perspectiva do corpo vibrátil, sensível às intensidades e movido no reconhecimento de presenças vivas capazes de nos afetarem e nos encontrarem. O Capital investido em produzir modos de subjetivação, cria barragens/ represas a uma vulnerabilidade necessária, para encontrar com outro, o outro “presença viva”. Nesse ato de buscar se faz necessário romper com essa barragem para o fervilhar de certa vulnerabilidade ao outro, que deixa de ser agora projeção de imagens.
Nesse sentido, romper as represas é deixar fluir o rio, sem pretensões de cercá-lo, ou mercantiliza-lo. Tais barreiras constituem verdadeiras hidrelétricas da vida, máquinas cerceantes e capitalísticas do corpo.
“O rio que tudo arrasta, se diz violento, mas ninguém diz violenta as margens que o comprimem.” Esse é o fragmento de um poema de Bertold Brecht (1982), que utilizo, para dar luz ao que pretendemos buscar, iluminados pela clínica dos afetos, da qual disserta é a clínica de um corpo específico, de lugar definido, e de setting não convencional ou estático. Falamos sobre o corpo da rua. Corpos que têm cor, história e classe social. E que, vez ou outra, escapam às margens da clínica das políticas cerceantes que os margeiam e tudo arrastam. Não há como ser possível uma clínica generalista nesse cenário.
Não pretendemos, contudo, nesta pesquisa, definir um modelo de clínica a ser seguido, ao contrário, desconstruir o modelo posto hegemonicamente e propor uma clínica dos encontros, pois, para que possamos navegar a partir da clínica dos afetos, é preciso, antes, encontrar. Ao passo que assumimos esse lugar de captura, e nosso posicionamento, passamos a enxergar o outro com o qual nos encontramos, dominante ou dominado, relacionando-se com ele.
Nessa aposta, nos situamos como aqueles que buscam a clínica do outro presença viva por uma via de buscar decolonizar esse projeto retina. Ou seria mais apropriado dizer que buscamos uma decolonização do olhar retina, para que outras lentes possam nos ajudar a romper com esse processo violento e limitado de encontrar com outros seres. É que nesse caminhar, passamos perceber o encontro atravessado por muitas coisas, muitos seres, muitas forças vivas.
Tomamos aqui algumas considerações de corpo a partir de especialistas indígenas do Alto Rio Negro, conhecidos como pajés. Para essa reflexão convocamos a ideia de Kahtise que são considerados forças ou elementos do corpo vitais na ideia de bom funcionamento e equilíbrio da pessoa. Esse termo pode ter diferentes sentidos. Pode ser na identificação de que a carne de caça ou de peixe está crua, não foi cozida ou assada ao ponto de consumo. Cabe outros significados. A expressão kahtise acompanhada da expressão nirowe, traz o significado que as coisas possuem uma vida própria como luz, floresta, terra, água, animal, ar e humano. Outra expressão utilizada foi manhsã kahtise que versa sobre os elementos imateriais que constituem o corpo. Essa expressão diz sobre as formas de luz, floresta, terra, água, animais, ar como elementos constitutivos do corpo humano.
Concluindo esse trabalho e florescendo reflexões: essa pesquisa em andamento busca novas concepções de corpo para forjar novas possibilidade do entendimento do corpo, para propor novas possibilidades clínicas. Tecidas e experimentadas numa atitude decolonial que percebe ou busca novos sensíveis do outro e do encontro experimentados por forças vivas.