INTRODUÇÃO: ao longo dos anos, a violência contra a mulher tem se apresentado como problema de saúde pública, a nível global, gerando impactos intergeracionais, domésticos, familiares, psicológicos e sociais. A violência pode englobar agressões físicas, sexuais, patrimoniais, morais, psicológicas, emocionais, além de comportamentos controladores, humilhantes, opressores e de exposição. Esses abusos, na maior parte das vezes, são provocados por pessoas do convívio da mulher, em especial o parceiro íntimo e ocorrem durante ou após o término da relação. Por se tratar de uma problemática persistente, multifacetada e complexa, considera-se imprescindível a realização de pesquisas que contribuam para a sua identificação, prevenção e/ou enfrentamento. Dentre os estudos, disponíveis na literatura e direcionados para a compreensão da violência de gênero, tem-se a investigação da Organização Pan-Americana da Saúde, em 1980, que envolveu a rota crítica percorrida pelas mulheres para romper com o ciclo de violência em dez países latino-americanos. Entretanto, o estudo não incluiu o Brasil, justificando a necessidade de estudos que permitam conhecer a trajetória das mulheres que decidem romper com as situações de violência. OBJETIVO: conhecer as vivências relacionadas à rota crítica de mulheres em situação de violência praticada pelo parceiro íntimo. MÉTODO: estudo de abordagem qualitativa, realizado durante a pandemia da COVID-19, na Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher de um município da Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul. As participantes foram 10 mulheres. Os critérios de inclusão envolveram ter sofrido violência contra mulher e apresentar faixa etária acima de 18 anos. Os critérios de exclusão foram ter vivenciado situações de violência praticada por outros indivíduos, que não o seu parceiro íntimo. As mulheres que estavam aguardando ou haviam finalizado atendimento na Delegacia foram convidadas a participar do estudo individualmente. Diante do aceite, foram encaminhadas para uma sala privada e tiveram acesso ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Foi utilizado critério de saturação de dados para interromper a captação de novas participantes. Na coleta de dados, utilizou-se entrevista semiestruturada individual e, na sequência, desenvolveu-se a análise de conteúdo temática. O projeto teve aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa da universidade local, com o Certificado de Apresentação de Apreciação Ética número 42566920.8.0000.5323 e número do parecer 4.551.775. RESULTADOS: as participantes encontravam-se na faixa etária entre os 21 e 54 anos. Todas eram heterossexuais. A maioria delas se autodeclarou parda, possuía ensino médio completo, era solteira, apresentava atividade laboral eventual e remunerada, e morava com o parceiro. Apenas uma delas não tinha filhos. O perfil das participantes assemelha-se ao verificado em outros estudos disponíveis na literatura. Apesar de a violência contra a mulher representar um fenômeno que se estende para todas as classes sociais, raças/etnias, territórios e faixas etárias, muitas vezes, o perfil dessas mulheres envolve jovens, pardas, solteiras e com baixa escolaridade. A maioria das mulheres afirmou que, no início do relacionamento, o parceiro não demonstrou comportamento agressivo ou violento. Outros estudos também sinalizam os mesmos achados, indicando que, inicialmente, os parceiros íntimos são afetuosos, o que permite que as mulheres construam laços familiares com esses indivíduos. Na sequência, verificou-se que a violência emergiu nas vidas das mulheres de forma gradual, tornando-se um fenômeno constante. Esse comportamento é característico da primeira fase do ciclo de violência, em que as situações de violência iniciam de forma imperceptível até que passem a ocorrer momentos de tensão e conflitos leves no relacionamento. As participantes também mencionaram que vivenciaram situações de violência psicológica, caracterizadas por ameaças contra elas e seus familiares. Elas relataram que os parceiros passaram a apresentar sentimentos de obsessão, ciúmes e possessão. Em alguns casos, as situações de violência foram atribuídas à dependência química e/ou alcoólica, tal como aponta a literatura, destacando que o uso de álcool e drogas é capaz de potencializar a violência contra a mulher. Ademais, observa-se que, nesse período, as mulheres vivenciavam a segunda etapa do ciclo de violência, a qual tende a ser caracterizada por agressões. Diante do medo das ameaças realizadas pelos parceiros e direcionadas a elas ou aos familiares, as mulheres decidiram romper com o ciclo de violência. Normalmente, na terceira etapa do ciclo, ocorre a chamada lua de mel, na qual o agressor demonstra arrependimento e remorso pelo medo da separação. Ainda assim, as mulheres mostraram-se decididas e em busca do rompimento. A partir da realização do boletim de ocorrência, elas desejavam manter distanciamento dos parceiros e buscavam por tranquilidade e paz. Na rota crítica de mulheres em situação de violência praticada pelo parceiro íntimo, a família, os amigos e os serviços de proteção social representaram as suas principais redes de apoio. Autores sinalizam que os familiares e os amigos fornecem suporte financeiro e emocional às mulheres, enquanto que as delegacias e os serviços de assistência social, geralmente, oferecem informações e assistência de urgência. Pesquisa aponta que, muitas vezes, as instituições religiosas e os serviços de saúde são indicados como rede de apoio às mulheres em situações de violência. Entretanto, no estudo em tela, estas instituições e serviços não foram mencionados pelas participantes. O enfermeiro, por exemplo, por ser um profissional de saúde próximo da população poderia representar uma importante fonte de apoio para a mulher em situação de violência, fornecendo escuta qualificada e proporcionando um local seguro e acessível às usuárias, especialmente na Atenção Primária à Saúde. CONSIDERAÇÕES FINAIS: o estudo evidenciou a necessidade de proposição e divulgação de um fluxo de atendimento para as situações de violência contra a mulher, permitindo a identificação, notificação, atendimento multidisciplinar e intersetorial. Ainda foi possível verificar que os serviços e os profissionais de saúde não foram indicados como rede de apoio das mulheres em situação de violência, o que pode sinalizar uma fragilidade na assistência à saúde, sendo necessário pensar sobre a criação de ações de proteção, identificação e apoio às situações de violência contra a mulher. Ademais, pondera-se que para que a violência contra a mulher possa ser combatida, ela precisa ser reconhecida. Nesse sentido, é necessário abordar o tema nos currículos de graduação na área da saúde, bem como nas ações de educação permanente direcionadas aos profissionais de saúde e ações de educação à saúde voltadas à população. A partir dessas estratégias, considera-se possível contribuir para a redução das situações de violência contra a mulher, bem como contribuir para o empoderamento feminino e subsidiar ações intersetoriais de proteção e apoio às mulheres.