Introdução:
Para vários povos originários latino-americanos, como os Guaranis, uma vida levada de uma boa forma, se constitui como uma vida bela e viver bem está diretamente relacionado com o cotidiano da vida em território. Tal concepção é expressa através do termo Teko Porã, que tem dimensão filosófica, política, social e espiritual, representando uma forma positiva de Ser e de Viver em harmonia com/nos territórios. Segundo Takuá, em seu texto “O sistema milenar educativo de equilíbrio” (2018), o termo é usado em contraposição a Teko Vai que se constitui como um modo feio e mal de estar no mundo, presente no individualismo, no empobrecimento, na depressão e em diferentes formas que nos afastam de viver uma acentuada experiência nas ações diárias da vida.
Partindo desta cosmovisão, destacamos a relação do sujeito com/em seus territórios, a fim de compreender em que medida a vida se potencializa ou não, numa produção de Teko Porã ou de Teko Vai. Nessa direção, o projeto de extensão MoveMente, desenvolvido pelo Grupo ApoiaRaps da Universidade Federal da Paraíba, atua ofertando práticas corporais em diferentes instituições e equipamentos sociais para frequentadores/as de um CAPSad III de João Pessoa. Buscamos ampliar os espaços de convivência e de produção de vida, assumindo a Liberdade, o Direito à Cidade, a Inclusão Social e a Integralidade como norteadores do cuidado em saúde mental.
A partir da experiência do MoveMente, o presente estudo pretende demonstrar como um projeto de extensão, se acostando na noção de Teko Porã, tensiona a proposta de promoção de saúde a partir da potência do viver, em relação com/nos territórios de vida das pessoas, ampliando a noção de saúde, no entrelaçamento entre corpo, palavra, mente e território.
Método:
Trata-se de um estudo descritivo-analítico, do tipo relato de experiência, a partir do qual são analisados os efeitos do projeto de extensão MoveMente. O grupo ApoiaRaps que desenvolve o MoveMente se caracteriza pela indissociabilidade da pesquisa-ensino-extensão, e pela interdisciplinaridade, sendo construído por docentes, estudantes e trabalhadores de diversas áreas como Psicologia, Medicina e Educação Física. Está ainda vinculado à Residência Multiprofissional em Saúde Mental, ao Mestrado em Saúde Coletiva e ao PET-Saúde da Universidade Federal da Paraíba.
O CAPSad III, ao qual o MoveMente se articula, se constitui enquanto um serviço de referência no cuidado, com ênfase na promoção do bem-estar, na facilitação da reintegração social, na garantia dos direitos civis e na promoção da autonomia de pessoas com intenso sofrimento psíquico relacionado ao uso prejudicial de substâncias.
O projeto mapeia espaços na cidade que oferecem práticas corporais, e pactua previamente uma determinada vaga para usuários/as do CAPSad lll. Em visitas semanais são oferecidas as vagas para os/as frequentadores/as, e aqueles/as que decidem participar do projeto recebem acompanhamento nas práticas por parte dos/as extensionistas.
O projeto existe em seu atual formato desde 2022, mas o presente relato se refere a vivências ocorridas entre junho e dezembro de 2023, no acompanhamento de uma usuária do CAPSad III em aulas de natação, sustentado no encontro e na produção coletiva em Práticas Corporais, no contexto da promoção da saúde e produção de vida.
Toda experiência junto da usuária foi registrada em diários de campo, que consistiam em escrever de forma livre sobre as visitas semanais no CAPSad e na natação, os encontros e conversas com Yara (Nome fictício, que em Tupi-Guarani significa “mãe das águas”), assim como os afetos e afecções produzidas nesses encontros. Os diários de campo possibilitaram a elaboração do vivido por parte dos extensionistas, e também se tornaram subsídio para as discussões em reuniões semanais com o coletivo ApoiaRaps que tiveram como objetivo supervisionar e oferecer aporte teórico para o acompanhamento da usuária.
Resultados:
O relato de experiência em questão trata o acompanhamento de Yara, recém acolhida no CAPSad III após fortes crises decorrentes de uma violência sofrida por parte de seu ex-companheiro. Neste período, Yara vivencia um uso prejudicial de diferentes substâncias, que se intensificou nos corredores da Universidade que frequentava como estudante de graduação e onde reconhecia uma produção potente de vida, de Teko-Porã. Yara trancou seu curso no período em que passou a frequentar o CAPSad III, relatando que a Universidade atrapalhava o seu processo de cura, pois passou a ser um território gatilho para o uso de substâncias, e consequentemente, produtor de Teko Vai.
A partir do desejo de Yara, o MoveMente pactuou uma vaga nas aulas de natação ofertadas à comunidade local pelo curso de Educação Física daquela mesma Universidade. O objetivo foi promover o cuidado integral em liberdade e ressignificar a relação da usuária com território, a fim de explorar novos espaços de produção de vida.
Dois extensionistas acompanharam Yara na construção de novos vínculos com a Universidade através das aulas de natação. Além disso, a apoiou no fortalecimento de sua autonomia para circular na cidade, pois após vivenciar um episódio de violência com seu corpo num transporte público, não conseguia andar de ônibus sozinha. Após algumas experiências compartilhadas entre Yara e os extensionistas, foi possível para ela ressignificar algumas vivências e produzir novos sentidos e relações com o território-cidade. O que antes era barreira, passou a ser potencialidade no cuidado, pois permitiu à usuária mais autonomia para se locomover para outros lugares da cidade para além da natação.
Poder circular na Universidade de outra forma, por novos caminhos, conexões e relações permitiu a Yara também ressignificar seu território-universidade em sua produção de vida. Caminhar pela Universidade, da parada de ônibus até o local da natação; produzir conversas e novas relações afetivas na beira da piscina; e mesmo vivenciar a experiência de nadar e movimentar o corpo na água; tudo isso foi potência de cuidado que favoreceu Yara a produzir novos afetos com e na Universidade. Yara volta a sentir a instituição enquanto um espaço bom de viver, o que demonstra um estado novo de percepção de si e de (re)apropriação desse território, entrelaçado com os bons sentimentos produzidos em sua experiência na natação. Um corpo que resgata e acrescenta um novo espaço para si. Yara então retoma seus estudos na Universidade, resgatando a instituição como um espaço de Teko Porã.
Considerações Finais;
Esse relato demonstra que a produção de um território de/para si extrapola os limites geográficos. Ele é fruto de nossa territorialização, o que sinaliza a possibilidade de (re)territorializar. Nesse sentido, torna-se possível ampliar e ressignificar os espaços em que existimos, transformando-os em produtores de vida através de novos movimentos e de novas formas de se relacionar com o mundo.
Teko Porã ensina que para refletir sobre o modo de ser, é preciso pensar o lugar de ser, ou seja, o modo de existir bem no mundo está indissociado com o onde existimos no mundo. A experiência com Yara anuncia justamente a possibilidade de (re)existir de maneira positiva em um território.