O trabalho exposto é resulto de uma pesquisa de Mestrado cujo tema da Atenção à Crise na Saúde Mental, entendendo aqui a crise, a partir da teoria relacional, como momentos de rupturas dos sujeitos, agudização de sintomas e comportamentos que provocam ressonâncias sociais, tem-se apresentado com conceitos complexos de serem operados no cotidiano dos serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e como desafio importante na consolidação da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Com viés da metodologia qualitativa, com estudos narrativos, biográficos, de quatro itinerários de cuidado na assistência e na gestão em saúde mental, em distintos cenários do país: estagiária nos programas docentes-assistenciais PIC (Programa de Intensificação do Cuidado a Pacientes Psicóticos) e PADAC (Programa de Atenção Domiciliar à Crise), psicóloga da Saúde Mental na Atenção Básica no sertão baiano, Apoio Técnico em Saúde Mental e Coordenadora da Saúde Mental em cidades da Região Metropolitana de São Paulo. Os itinerários descritos desvelam que a Clínica Psicossocial dispõe de tecnologias de cuidado sofisticadas e potentes na atenção à crise. As tecnologias que atuam na relação, como Intensificação de Cuidados, Manejos Vinculares, Alteridade, Posição Orientada, Atendimento Domiciliar, Filiação Social, Cuidado às Famílias, alinham-se com a proposta do modelo psicossocial e podem ser acionadas no cotidiano dos serviços substitutivos, no território, nas práticas comunitárias e no domicílio dos usuários. Em cidades marcadas pela insuficiência nas redes de serviços de saúde e pela falta de profissionais especializados, os processos e arranjos de trabalhos devem focar-se, além do domicílio, nos recursos disponíveis no território e na comunidade. As cidades metropolitanas que oferecem uma abundância de serviços de saúde para as situações de crise, especialmente os Hospitais Psiquiátricos, precisam dispor do enfrentamento ao modelo biomédico, que concentra a atenção à crise essencialmente no profissional médico e nas instituições, abdicando das práticas psicossociais. Em ambos os cenários, foi constatada a necessidade de investimento intenso nas equipes, de envolvimento do domicílio como lócus de cuidado e como suporte para o fortalecimento das relações familiares e das redes sociais e da efetivação do cuidado em saúde mental na AB. No entanto, nem sempre o contexto é favorável à desconstrução do fluxo de direção única CAPS-PA-Hospital Psiquiátrico, que ocorre na maioria dos arranjos de atenção à crise. Esse cenário é típico e coloca em risco o projeto de Modelo Psicossocial e as bases de sustentação da Reforma Psiquiátrica. Nessa configuração, o principal desafio é suprimir do imaginário social a ideia da instituição fechada como lócus único possível de intervenção na crise e a figura do médico e da psicofarmacologia como agentes exclusivos do cuidado. Nosso usuário, factualmente alcunhado de louco, está situado entre os que não podem viver em sociedade por seu status, suas condições subjetivas. Além disso, impõe-se a ele uma condição econômica e social precária, de modo que, além de “não ser gente”, também não lhe é permitido ser cidadão. Raciocínio que permite esclarecer a consagrada não priorização do investimento de recursos financeiros nas Políticas Públicas em Saúde Mental, apesar dos elevados e crescentes números epidemiológicos, que revelam, cada vez mais, a existência de pessoas em sofrimento psíquico grave e persistente. Com acentuada desigualdade na implantação da Rede de Atenção Psicossocial, os municípios brasileiros constroem diversos arranjos entre serviços e pessoas para promover cuidados em Saúde Mental, entretanto a interação intricada entre a Crise Psíquica e os princípios do SUS, Reforma Psiquiátrica e Clínica Psicossocial representa um desafio histórico para os profissionais de Saúde Mental. Questiona-se então como operar o estado da arte e da técnica neste contexto complexo? Na ausência de uma rede robusta e sem muitos profissionais, a cidadezinha baiana convoca ao esforço cotidiano dos arranjos, dos recursos no entorno social dos usuários, do domicílio como lugar de cuidado e atendimento, da boa comunicação entre a rede formal e a informal. Negociações sutis, delicadas. Há dificuldades, receios e indisposições para o campo da Saúde Mental. O refazer do trabalho é diário e perene. A cidade grande traz outros desafios: o foco no indivíduo, no serviço, na agenda médica, na medicação assistida, na participação da “grade de atividades”. Esse contexto leva facilmente à desconsideração da potência do apoio da rede, da família, do entorno social, que são imprescindíveis na contratualidade do sujeito, no seu protagonismo. Esses aspectos são fundamentais de se ter em conta, principalmente no suporte em momentos de rompimento, que ocasionam grande sofrimento psíquico ao usuário e ao seu entorno familiar e social. Os PTS, em sua maioria, ainda se encontram restritos às consultas médicas, aos atendimentos individuais com referência terapêutica, grupos ou oficinas aleatórias. Tudo anotado com precisão de dia e horário no cartão do CAPS. Operar as vertentes teóricas de crise em saúde mental no cotidiano dos serviços e promover tecnologias de cuidado psicossociais são desafios complexos, que exigem dos profissionais um referencial que produza orientação, racionalidade clínica e manejo técnico. Enquanto gestão, o diferencial marcante tratou-se de diagnóstico situacional inicial, indicadores de gestão, decisões no coletivo (equipe, gestor da unidade, apoio técnico e coordenação), organização de fluxos. Os resultados conquistados, de redução de 50% a 75% na ocupação de leitos do PA-P por meses seguidos, foram decisivos na operação da Atenção à Crise, todavia viabilizada por grandes investimentos na ampliação da rede, mudanças nos processos de trabalho, a intensificação de educação permanente, as supervisões clínico-institucionais, a ampliação de recursos humanos e o fortalecimento das relações intersetoriais. significativos, as práticas manicomiais persistem nos cotidianos dos serviços e das equipes, onde impera a busca da retaguarda hospitalar e dos cuidados exclusivamente médicos nos momentos da assistência à crise. O financiamento à RAPS não alcançou patamares suficientes para sua implantação e seu fortalecimento, sendo comum encontrar equipes escassas e exaustas, presas aos muros dos serviços, com agendas lotadas e modos cristalizados de trabalho na clínica da Saúde Mental. No entanto, observou-se, também, que o quantitativo de serviços não necessariamente se traduz em melhor Atenção à Crise. A efetividade da atenção à crise está relacionada com o estabelecimento de fluxos, com a interlocução positiva entre os serviços que compõem a RAPS, com as equipes atuando no território a partir dos recursos comunitários, da Atenção Domiciliar, do apoio às famílias, da intensificação de cuidado, entre outros. Tais práticas constituem-se em tecnologias de cuidado potentes e promotoras de atenção psicossocial, alinhadas aos princípios do SUS e da RPB, sobretudo nos momentos de maiores fragilidades psíquicas dos sujeitos e dos seus núcleos familiares.