Na América Latina, sobretudo com a chegada de alguns governos de características de esquerda, a temática das medicinas indígenas tem sido foco de discussões das políticas de saúde. A Política Nacional de Saúde Indígena no Brasil orienta a integração das práticas de medicina indígena nas ações de saúde nos territórios, incorporando essas práticas nos serviços de saúde. Nesse processo, a interculturalidade é importante para a orientação dos saberes nos territórios a partir das particularidades de cada povo. No entanto, ainda há uma luta para a implementação efetiva das diretrizes da Política de Saúde Indígena, visto que o que se observa na realidade é um predomínio da biomedicina nas práticas de cuidado em detrimento das medicinas indígenas, que existem e são praticadas no cotidiano das aldeias independentemente dos serviços de saúde. Neste sentido, é necessário decolonizar os conceitos da saúde indígena nos territórios, a começar por entender quais são os conhecimentos e as práticas em questão. Este artigo trata-se de uma revisão integrativa que objetiva investigar a produção científica sobre as práticas e saberes que constituem os cuidados da medicina indígena na América Latina. Isso foi feito com o intuito de identificar e compreender a existência e a abrangência do debate nos países e suas implicações políticas. Para este trabalho foi assumida uma postura teórico-política da decolonialidade.
A proposta da revisão integrativa foi analisar o tema da medicina indígena orientados pela questão norteadora: “quais os conhecimentos e práticas constituem os cuidados em saúde para os povos indígenas na América latina?”. A pesquisa foi realizada nas bases de dados: Lilacs, Medline, La Referência e BVS da saúde dos povos indígenas. Como instrumento de seleção das publicações, foi utilizado o descritor “Medicina tradicional and Povos indígenas”. Como filtros foram utilizados: Texto completo; Idioma português, inglês e espanhol; artigos publicados entre os anos de 2013 e 2022. Os critérios de inclusão foram publicações em periódicos classificados pelo Qualis da Capes de A1 a B3, estudos qualitativos e quantitativos e que apresentassem os descritores utilizados na pesquisa. Os critérios de exclusão foram: monografias, teses ou dissertações, estudos duplicados, textos completos não disponíveis e artigos fora da temática da pesquisa. Foram identificados dos 157 artigos. Excluindo artigos repetidos ou duplicados, e através dos critérios de exclusão, restaram 98 artigos, que foram lidos na íntegra para avaliação dos critérios de elegibilidade. Destes, foram excluídos os que não respondiam à questão norteadora. Ao final desses procedimentos, foram selecionados 21 artigos para a revisão.
Dos resultados, obteve-se que o ano com mais artigos publicados foi 2017, com seis publicações. A maioria dos artigos vem do Brasil, estando distribuídos pelas regiões Norte, Nordeste, Sul e Centro Oeste. Dos demais países da América Latina, foram selecionados artigos do Peru, Colômbia e Argentina. Os estudos abordam temas como sistemas de saúde, enfermidades, atuação profissional, gestão de saúde e itinerários terapêuticos. Dos temas abordados, 38% dos artigos discutem a interação entre o modelo biomédico e a medicina indígena. Outros 23% tratam da preservação da diversidade cultural e da coexistência com a biomedicina. Questões como preconceito e inferiorização das práticas indígenas são abordadas. Alguns estudos apontam a visão de saúde indígena como algo mais complexo e amplo que a ausência de doença, sendo que 33% abordam a integração entre ambiente e saúde, bem como a importância da preservação ambiental e direito à terra. Os artigos analisados foram publicados em sua maioria nas revistas Saúde e Sociedade (17,8%), Cadernos de Saúde Pública, Ciência e Saúde Coletiva, e Amazônica: Revista de Antropologia (7% cada). A maioria das pesquisas (85,7%) foi qualitativa, refletindo a necessidade de abordagens etnográficas. Nos estudos, 24 etnias indígenas foram mencionadas nominalmente, destacando a diversidade cultural envolvida nas pesquisas.
A discussão dos resultados ocorreu sob a perspectiva de duas principais categorias: “Saúde: conceitos e cuidados indígenas”; e “Medicina indígena e biomedicina”. Sobre os conceitos e cuidados indígenas, evidenciou-se que eles variam entre povos e conforme as etnias, envolvendo diferentes elementos, cuidadores e conhecimentos de diagnóstico e cura. A saúde é vista de maneira holística, incluindo dimensões naturais e não-naturais. Entende-se o Pajé, ou especialista, como principal cuidador por ser capaz de lidar com a dimensão não-natural. Para muitos povos, a floresta é habitada por "encantados" e "espíritos" que influenciam na saúde, e o especialista atua na intermediação com esses seres. Um aspecto importante para entender as práticas do cuidado na medicina indígena, é distingui-la das práticas religiosas. Barreiras linguísticas dificultam a caracterização das práticas indígenas. Termos como "sagrado" e "espirituais" podem causar mal-entendidos e reforçar conceitos ocidentais, distorcendo o pensamento indígena. Dentre os principais agentes na saúde indígena, destaca-se a atuação crucial das mulheres. Alguns artigos trazem exemplos de protagonistas na saúde indígena como parteiras e rezadeiras, que praticam terapias e são reconhecidas por seu conhecimento ancestral, e de mulheres que no cotidiano são as responsáveis por práticas de cuidado para si e seus familiares. Plantas medicinais são essenciais na medicina indígena e o uso de ervas em chás e banhos é integrado na rotina de cuidado, seja por prescrição do Pajé, ou por já fazer parte de conhecimentos ancestrais. A ação das plantas na medicina indígena não está restrita às qualidades bioquímicas ou farmacológicas, mas associada a elementos mais amplos em relação à natureza e as dimensões “espirituais”. Além do uso de plantas, os estudos apontam a valorização de diversos. Alguns estudos salientam o uso da voz em cantos e danças, de instrumentos como o cachimbo, de instrumentos de guerra, indumentárias, pinturas corporais, entre outros elementos. Na perspectiva indígena, o processo de saúde e doença transcende os conceitos de doença e cura. Um elemento muito presente na medicina indígena é o sistema de proteção. Este envolve diversos agentes, incluindo a natureza e o mundo “espiritual”, e sua atuação expande a medicina indígena para além de “doença” e “cura”.
Quanto à relação entre medicina indígena e biomedicina, percebe-se que o diálogo e a interculturalidade entre as medicinas ainda são objetos de luta política por parte das lideranças indígenas e movimentos sociais, uma vez que esse diálogo não se estabeleceu com clareza. Há relatos em que a biomedicina exerce um papel colonizador, ignorando e desencorajando os modos de cuidado próprios dos povos indígenas. Essa abordagem se afasta do preconizado, por exemplo, na política de saúde indígena brasileira, e em alguns casos resulta em afastamento dos próprios indígenas de sua cultura e referências. Há casos em que a biomedicina não conflita com as práticas de medicina indígena, no entanto estas ocorrem de modo paralelo, sem diálogo entre as medicinas, e sem integrar a medicina indígena nos serviços de saúde. Como contraponto a essa realidade, destacamos o papel do Agente Indígena de Saúde que atua como um mediador entre os saberes indígenas e os recursos da saúde ocidental.
Conclui-se que que o cuidado em saúde na medicina indígena acontece por meio um complexo sistema, e que este é o ponto de partida para refletir sobre a relação com a biomedicina, problematizando as assimetrias de poder e a hierarquização dos conhecimentos. É necessário que a medicina indígena esteja como central e ordenadora do cuidado na saúde indígena, e que se amplie a produção de conhecimento sobre a Medicina Indígena, com a participação dos especialistas indígenas.