Ao longo da história, a arte tem sido considerada uma genuína forma de manifestação das experiências humanas, efetivamente libertadora, ela transforma as vivências individuais e coletivas em formas significativas de expressão. Não é uma novidade no âmbito da saúde mental reconhecer o valor da arte como ferramenta terapêutica geradora de cuidado. Nesse viés, este relato de experiência tem como objetivo explorar de que forma a arte se entrelaça com os cuidados em saúde mental desenvolvidos em um Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi) e como isso se relaciona com a formação em psicologia. O relato foi elaborado por uma graduanda do curso de psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), com base em experiências vivenciadas durante o estágio curricular no CAPSi de um município do interior do Rio Grande do Sul. É importante pontuar que a ação foi acompanhada pela orientadora da instituição de ensino e pelo supervisor do local de estágio. Os CAPSi devem adotar uma abordagem clínica multidisciplinar e ampliada, que considere o indivíduo em sua totalidade. A clínica ampliada é um conceito desenvolvido por Gastão Wagner no campo da saúde coletiva, nos anos 1990. Posto isto, é uma abordagem integrada de cuidados em saúde que vai além do modelo tradicional de atendimento centrado apenas na doença. Busca considerar de maneira mais abrangente as dimensões físicas, psicológicas, sociais e culturais da saúde de um indivíduo e reconhecer que diversos fatores podem influenciar em sua integridade física e mental. Nesse sentido, considerando que os modelos clássicos de atenção à saúde mental já não dão conta da multiplicidade dos fatores associados ao sofrimento mental, novas formas de atenção precisaram ser pensadas e implementadas. Desse modo, no ínterim da atuação no estágio, se observou que a arte é um dos dispositivos de cuidado em saúde mental fundamental e bastante utilizado no serviço. Tais observações foram feitas por meio da participação em grupos e oficinas, atendimentos individuais e também na própria ambiência do local. A ambiência em um CAPSi refere-se ao ambiente físico, social e emocional que é desenvolvido para a recepção das crianças e adolescentes que frequentam o serviço. Um ambiente acolhedor, seguro e inclusivo é crucial para que os indivíduos se sintam confortáveis e confiantes para expressarem as suas emoções e preocupações. Ademais, uma ambiência cuidadosamente planejada e adaptada às necessidades dos frequentadores pode contribuir para o desenvolvimento de suas habilidades sociais, emocionais e cognitivas. Um ambiente lúdico e estimulante, por exemplo, pode facilitar a aprendizagem e a expressão criativa do público infantojuvenil, promovendo o seu desenvolvimento integral. Outro aspecto importante da ambiência é a valorização da participação ativa nas atividades do serviço. Tais questões puderam ser observadas em diferentes momentos: crianças chegavam no serviço e sabiam exatamente em quais locais encontrariam os seus desenhos, demonstrando sentimentos de pertencimento; adolescentes elogiavam as artes expostas por outros colegas, fortalecendo o vínculo entre pares; frequentadores participaram da criação da decoração do prédio por meio de diversas atividades artísticas, como desenhos, pinturas, artesanatos, escritas. A prática artística, enquanto estimuladora do potencial criativo do sujeito e forma alternativa de expressão das emoções, das sensações e dos pensamentos (em detrimento da clássica tentativa de exploração do campo psicológico simplesmente através do discurso), desempenha um papel significativo no contexto do cuidado em saúde mental, promovendo uma abordagem mais lúdica, sensível e humanizada. Muitas vezes, crianças e adolescentes apresentam dificuldades em expressar os seus sentimentos e as suas emoções verbalmente, então a arte vem como uma alternativa a esse processo, permitindo-lhes a comunicação de maneira não verbal e simbólica, o que pode facilitar a exploração de questões emocionais complexas. Logo, ficou evidente que a arte serve como uma excelente ferramenta terapêutica, pois é capaz de encontrar caminhos de expressão que muitas vezes não seriam possíveis somente pelo discurso: “eu não estou louca; não quero ser internada; me de carinho e atenção; que meu caso está curado; obrigado por me ouvir; minha dor já passou; não era doença, mas você me curou.” (trecho destacado de poesia criada por frequentadora do serviço). Sendo assim, acessa elementos que transcendem a possibilidade de verbalização. Além disso, essa modalidade terapêutica se mostra também um dispositivo de fortalecimento de vínculos entre os pacientes e os profissionais de saúde, fator de extrema relevância para o acompanhamento em saúde mental. No decorrer da experiência, foi possível perceber que os profissionais reconhecem a importância da arte e seu papel fundamental nos cuidados oferecidos, facilitando a comunicação, permitindo a expressão de emoções e criando espaço para novas experiências. Nos CAPSi, o interlace da arte pode ser visto como uma abordagem terapêutica alternativa aos tratamentos convencionais, proporcionando outras formas de comunicação ao público infantojuvenil. A dimensão estética da arte nesses serviços desafia a visão tradicional de saúde mental centrada na medicalização e na abordagem exclusivamente sintomática, pois privilegia as sensações, os sentidos e a percepção que cada sujeito dá à sua própria expressão artística, associando-a à sua história e ao seu momento presente (estética: do grego “aisthésis", que pode significar experiência, sensibilidade, conhecimento sensível, sentimento, sensação, percepção). Assim, propõe uma perspectiva que considera o indivíduo em sua singularidade e totalidade, valorizando a sua subjetividade. Nesse sentido, ao integrar a arte nos serviços de saúde mental, estes podem promover uma cultura de cuidado mais humanizada, colaborativa e emancipatória, que reconhece as potencialidades dos pacientes e seu papel de protagonista no próprio acompanhamento. A presença de práticas expressivas nos CAPSi, contribui para a construção de um ambiente terapêutico mais acolhedor e inclusivo, onde os pacientes se sentem mais confortáveis para expressar suas emoções e pensamentos. Nas práticas terapêuticas, a arte pode ser vista como um meio de construir narrativas pessoais e coletivas, promovendo a reflexão sobre identidade e relações interpessoais. Somado a isso, oferece uma abordagem criativa no tratamento de questões de saúde mental das infâncias e das adolescências, que reconhece e valoriza as singulares formas de expressão de cada um dos usuários. Tais elementos são cruciais para que os serviços forneçam cuidados em saúde mental eficazes e aliados aos princípios da clínica ampliada. No que tange a formação em psicologia, é importante que os futuros profissionais sejam capacitados não apenas nas técnicas convencionais de intervenção, mas também na compreensão e na utilização de práticas artísticas como recursos terapêuticos. Isso requer uma abordagem interdisciplinar e, principalmente, muita sensibilidade por parte do psicólogo(a), para que possa validar a arte como ferramenta terapêutica, bem como valorizar a diversidade cultural e as expressões artísticas dos pacientes. Por fim, o estágio em um serviço especializado em saúde mental infantojuvenil oportuniza aos estudantes uma experiência bastante significativa para a formação acadêmica, pois extrapola os modelos clínicos clássicos em saúde mental e proporciona uma vivência de campo que abre horizontes de possibilidades, os quais a academia por si só não alcança. A inserção da arte como uma modalidade terapêutica oferece uma abordagem diferenciada, proporcionando variadas formas de expressão, de comunicação e de intervenção. Essa integração da arte no acompanhamento terapêutico enriquece a formação em psicologia, ampliando a sensibilidade para o cuidado com as complexidades da saúde mental.